Notas de um transeunte semiatento

1.
Inicia-se um colóquio na dianteira do ônibus, ao redor da cabine do motorista. Trabalhadoras jovens e senhoras tomam, na avenida Faria Lima, aquela que seria sua segunda ou terceira condução do dia que mal começara, para chegar ao "serviço", no bairro de Moema. O condutor do Vila Clara as recebe com a atenção digna de um anfitrião. Quatro delas permanecem próximas a ele e, portanto, ao vidro dianteiro do veículo, acompanhando as transições na paisagem e a variedade de eventos que se desenrolam pela extensão do trajeto. De anfitrião, o motorista passa a desempenhar o papel de moderador dos apontamentos das passageiras, complementando-os com o que lhe ocorre a partir das impressões manifestas por suas interlocutoras. Também ele apresenta suas pautas para compor a conversação pública. Nesse sentido, alude a temas como asregras de funcionamento de um ponto de ônibus; o aluguel de bicicletas para quem trabalha na região do Itaim; e o uso excessivo de álcool associado à cirrose. Nos bancos próximos, a plateia segue de ouvidos atentos.

2.
Com um ano e pouco de idade, filho de uma vendedora ambulante recém-imigrada para o Brasil, ele sempre acompanha a mãe no varejo informal praticado na escadaria do metrô Belém. Aquele (não)lugar de passagem para nós, os transeuntes apressados, é nada menos do que o seu lócus iniciático. Ali, ele anda de um lado para o outro, sobe e desce escada, vai até o tabuleiro de doces tentar alguma coisa, é tomado pelo cheiro das carnes que assam na grelha improvisada, brinca com um celular que lhe dão na mão e que toca funk, cai, é ajudado por um pedinte, levanta, segue se movimentando. Depois, desmaia de sono no colo da mãe.

3.
Encontro com o insólito. Aproveito uma viagem de ônibus para revisar o texto de apresentação do Diário do busão. Alguns pontos à frente, embarca um senhor embriagado, portando o seu corote de pinga. Como estou com a Luiza na parte dianteira, somos as primeiras pessoas, depois do motorista, com quem ele se depara no interior do veículo. Sugiro a ele que se segure nas barras amarelas para não cair com o arranque do ônibus. Olhando no fundo dos meus olhos, ele diz que seguraria em mim e me dá um abraço que dura uma eternidade. Acedo. Depois disso, equilibrando-se no corredor, se interessa pelo texto que tenho nas mãos. Toma ele de mim e põe-se a ler em voz alta, da forma que pode, a primeira linha: "o diário do busão...".

4.
Pegando carona no "bonde" dos limpadores-de-vidro-de-carro-no-semáforo, entramos juntos no ônibus. São seis jovens adultos, sendo duas mulheres e quatro homens. O motorista não assente que peguem carona - o que significa não pagar a tarifa. Mesmo assim, eles entram e permanecem na parte dianteira do busão, descendo em seu destino sem girar a catraca, desdizendo portanto a negativa do motorista. Estando com a Luiza, fico ali na frente também, interessado em saber mais deles. Descem na altura da rua Estados Unidos, onde farão a segunda jornada do dia de trabalho, iniciado no cruzamento da Alvarenga com a avenida Vital Brasil, no Butantã. Moram para os lados de São Mateus, zona leste. Naquele trânsito, mesclam trabalho com lazer. Se drogam com um tipo de líquido que levam, cada qual, numa garrafinha plástica mantida perto da boca. Entre as aspirações do tóxico e as conversas, comentam o que veem pela janela, evocando passagens ocorridas com alguns deles em certos pontos do trajeto e da cidade. Riem bastante. Gozam uns dos outros. Dias antes, passando pelo mesmo cruzamento no Butantã, vi três deles cantando e dançando no canteiro central da avenida, como se estivessem numa pista - e estavam. Juntando tudo isso, penso no quanto as nossas disposições, anseios e dilemas se assemelham. O que muda - e há um abismo perverso nisso - são as oportunidades que nos são facultadas. Me reconheço naquele "bonde", apesar de toda a distância entre nós.

5.
Horário de pico, passageiros com pressa, vento frio na plataforma, cinco jovens fazem um círculo com seus corpos, acendem uma vela e cantam parabéns-pra-você para o amigo que envelhece mais um ano em São Paulo.

6.
No Morro do Querosene, há casas posicionadas acima e abaixo do nível da rua. Dessas que ficam abaixo, vejo da rua, através de um portãozinho vazado, algo despontar no nível dos meus pés. É fim de tarde, de modo que a mancha em ascensão pela escada é transformada pelo costume dos meus olhos na cabeça da senhora que ali vive. Minha memória chega ao ponto de "colocar" um par de óculos na mancha, caracterizando com alguma precisão o rosto da velha. Mas qual não é a minha surpresa ao perceber, logo na sequência, que na verdade trata-se de um gato fugindo pelo portão.

7.
No vagão do metrô, o menino pensa alto: "nóis vai pra Barra Funda". A mãe o repreende: "nós vamos! Quem fala 'nóis vai' é corinthiano". Ele então retruca: "mas eu sou corinthiano".

8.
O marreteiro entra pela porta de trás do ônibus lamentando atrapalhar nossa viagem: “já me desculpo pelo inconveniente, mas vejam, a bomboniere chegou!”. Portando seu tabuleiro de papelão, subdividido em quatro escaninhos e preso ao seu pescoço por uma cinta, ele anuncia seus produtos como se a sua voz saísse de um alto-falante. Por estarmos num veículo biarticulado, brinca com a variação da altura do piso: “você que está na sobreloja, aguarde, pois logo chego aí”. Ao receber dinheiros em troca de bombons, acessa o seu caixa, que fica no bolso da calça. Desembarca três pontos depois, pagando o "aluguel da loja" com um twix entregue ao cobrador.

9.
Estou a caminho de Bragança. Quem me leva para lá, com seu carro, é um jovem motorista da Uber, simpático e comunicativo. Só não conversamos mais porque preciso estudar durante o trajeto, o que faço do banco de trás. Num dado momento da viagem, fitando seus olhos pelo espelho retrovisor, noto que eles estão prestes a se fechar. Me dirijo prontamente a ele: “você está cansado, não é?”. Ele fica sem jeito, arregala os olhos e se esforça para manter-se alerta. Daí em diante, seguimos conversando. Ele então me conta que, durante semana, trabalha das 5h às 22h, encaixando aí a faculdade. Opera pela Uber, 99 e Cabify, fazendo viagens extras no final de semana.

10.
Enquanto estou sentado no ponto de táxi, esperando dar a hora de um compromisso, o taxista pergunta se preciso do seu serviço. Explico que apenas estou usando o banco e a sombra da árvore. Ele então conta que aquele não é o seu ponto, uma vez que sequer tem ponto fixo na cidade. É motorista de carro de frota, daqueles que não pertencem ao motorista e que lhe exigem pagamento de diária. Ele então expõe que está ali apenas para descansar um pouco, e para tomar uma "fresca", pois se sente muito cansado. Sem fim de semana livre, vem fazendo jornadas das seis da manhã às duas da madrugada, dormindo uma média de três horas por noite. E justifica: “caso contrário, não consigo pagar a diária da frota e as contas de casa”.

11.
No elevador da empresa, ouço um grito silencioso: a faxineira terceirizada traz em seu uniforme azul marinho, na altura do peito, um discreto broche com o seguinte protesto: "não tá tranquilo, não tá favorável".

12.
Levando sua caixa de som num carrinho de mão, o MC consegue autorização da casa de yakisoba para puxar energia até o meio da rua Barão de Itapetininga. Para isso, usa duas extensões emendadas, de modelos diferentes. Sozinho, com o microfone na mão e uma caixa de papelão no chão, combina rimas e pedidos de contribuição em espécie. Concomitantemente, escolhe certos pedestres para, a partir de suas características, roupas e atitudes, compor micro-crônicas "de passagem". É como se narrasse o próprio movimento da rua, em tempo real, em alto e bom som.

13.
No corredor do Shopping Central de Uberlândia (MG), um menino acelera sua mini-land-rover-preta-motorizada entre os caminhantes. Sua pegada no volante é impaciente e truculenta.

14.
A caminho do ABC Paulista, de trem, presencio a interação entre dois jovens ambulantes, que vendem pururuca e chocolate, e um senhor de bota, camisa xadrez e chapéu puído, que carrega, embriagado, o seu berrante no ombro. Ao notá-lo no vagão, os marreteiros o instam a tocar o instrumento para todos os passageiros. Ao que o velho assente, soprando o chifre com alguma dificuldade, ainda assim produzindo aquele som ancestral que cala fundo na alma. Um dos vendedores, então, arremata a performance do tocador com esta: “aqui não é só ‘shopping trem’, não, é centro cultural também”.

15.
O rapaz em situação de rua usufrui, à sua maneira, da promoção de sofás das Casas Bahia: ao se deparar com um de três lugares, posicionado na marquise da loja a título de publicidade, arranja sua bolsa como se fosse um travesseiro e deita sobre o estofado macio, limpo e aconchegante.

16.
No vagão do metrô da linha vermelha, falando ao celular, o marreteiro vai buscando informações sobre a presença de guardas nas estações seguintes, o que ele designa por “estações molhadas”. A seguir, começa a anunciar seu produto aos passageiros: carteiras de couro “não sintético”. Logo que inicia seu pregão, um jovem lá do fundo se manifesta: “quero uma!”. Depois de atendê-lo, outro grita do meio da composição: “eu também quero uma!”. Daí em diante, vários outros passageiros também se interessam pelo item. Algumas estações à frente, aqueles que ainda não desembarcaram descobrem que os dois primeiros “compradores” são, na verdade, comparsas do vendedor.

17.
Do incêndio à boca, ou o incêndio na boca: percorrendo a avenida Rebouças com a Luiza, nosso ônibus é velozmente ultrapassado por um ensurdecedor veículo dos bombeiros. Espero o barulho passar para perguntar se ela sabe do que se trata. Juntos, vamos chegando à resposta, que, ao final, se mostra mais abrangente do que eu poderia esperar. Ao contar-lhe que "o caminhão vermelho serve para apagar o fogo que queima o prédio", ela imediatamente associa o calor e a destrutividade das labaredas de um incêndio à comida que abocanhara ainda quente no dia anterior, e que havia queimado sua língua.

18.
É engraçado quando uma gíria coincide com seu referente longínquo. Perdido no metrô, o rapaz de Aparecida de Goiânia (GO) me aborda na plataforma, pedindo que eu o auxilie a tomar o rumo certo e a fazer as baldeações devidas até o seu destino. Como vamos para o mesmo sentido, seguimos no mesmo vagão até a Sé, conversando. Logo noto que ele usa a expressão “trem” para se referir a diversas coisas, como geralmente fazem os goianos (e os mineiros também). Mas o incrível é quando ele usa “trem” para se referir ao próprio trem do metrô, o que provoca uma leve suspensão em nosso diálogo.

19.
Do meio do bloco de carnaval é possível avistar, resguardado na calçada, um senhor septuagenário que observa com interesse o fluxo dos foliões. Seu olhar passeia por nossos corpos, ao mesmo tempo em que sua face nos devolve uma imagem especular.

20.
Acho que temos mais ou menos a mesma idade. Eu, ex-morador de um prédio na Bela Vista. Ele, um morador em situação de rua. Faz muito tempo que não nos cruzamos, algo em torno de dez anos. Até que hoje, no miolo do bairro, em seus trechos mais acidentados, passamos um pelo outro. Ele não me reconhece. Vendo as mudanças em sua fisionomia, os olhos rebaixados, a pele macilenta, o queixo aquadradado, noto que envelhecemos.

21.
Variações sobre o mesmo tema, na padaria. Cada um que encosta no balcão da padaria pede seu "pão na chapa" de um jeito: "mal passado", "sem ir na chapa", "com requeijão", "sem prensar", "com pouca manteiga", "bem tostado", "cortado em quatro tiras", "caprichado na manteiga"...

22.
Com amigos no La Tartine, esticamos a conversa até o limite do horário. Deixamos o restaurante junto com os últimos funcionários. Por acaso, tomo o ônibus de volta com a funcionária da recepção. Vamos conversando ao longo do trajeto. Ela me conta que mora na favela São Remo, ao lado da USP, e que, àquela hora da noite, se sente mais segura por lá do que na avenida Rebouças, em frente ao cemitério, onde tomamos o ônibus. Diz que, tempos atrás, retornara à cidade de Mombaça, no Ceará, onde abrira uma pequena loja de roupas e bijouterias, mas que o negócio não foi para frente. De volta a São Paulo, hoje faz jornada dupla, trabalhando em outro restaurante, além do La Tartine. Com frequência, dorme no local de trabalho para agilizar a rotina e economizar nas passagens.

23.
"Tudo aqui tem um jeito de torturar. Esse inox, as cores, esse azul, essa gente falando, esse banco aqui, o plástico, isso tortura, cada um do seu jeito. Essa luz aqui está me torturando, muita cor tortura." (passageira do metrô, pela escuta de Luciana Bortoletto)

24.
Cena enigmática de leitores no metrô. São três jovens, com não mais de vinte e cinco anos cada. Não dá para saber se viajam juntos, pois estão sentados em bancos separados, sendo que o terceiro se mantém em pé, perto da porta. Não se falam e nem se olham. Estão hiper compenetrados (como se a conclusão da leitura fosse algo urgente), cada qual com os olhos grudados nas páginas de livros que, mais do que se assemelhar entre si pelo tamanho e grossura, apresentam trechos grifados em cores idênticas, parecendo indicar tópicos distintos: rosa, azul e amarelo.

25.
Parada na calçada e apoiando a mão no tronco da árvore, a senhora pisa uma a uma as amoras caídas no chão.

26.
Casados, eles vendem café, pão de queijo e bolo, no ponto de ônibus da avenida Santo Amaro, esquina com a Helio Pellegrino. A parada de ônibus é extensa, dividida entre “Plataforma 1” e “Plataforma 2”; na primeira param os ônibus que vão para Pinheiros e na segunda, os que vão para o Centro. O casal tem um combinado: cada um monta o seu tabuleiro numa das plataformas, de modo a atender tanto os passageiros que vão para Pinheiros como os que vão para o Centro. Quando algum item acaba numa das bancas, marido e mulher estão ali para se suprir mutuamente.

27.
Atravessando a praça, deparo-me com dois urubus ciscando na terra. Estaco, não posso simplesmente seguir meu caminho. Aquelas presenças são muito eloquentes. Fico por um tempo observando seus grandes corpos cobertos por sobretudos de penas e suas caras envoltas em máscaras de não sei que. A senhora que passeia com os cachorros acha graça no meu interesse pelas aves ao rés do chão. Explica-me que estão sempre por ali, alimentando-se dos animais mortos que compõem os despachos arranjados entre as raízes das árvores.

28.
Diante da boca da betoneira lambuzada de concreto fresco, o pedreiro confessa seu desejo matinal: “que vontade de comer um pão com manteiga na chapa...”.

29.
Parodiando a letra de "No fundo da garrafa", a moça trans em situação de rua cantarola na Sete de Abril: "tô te procurando no fundo do corote".

30.
“Nossa, como a Luiza tá grande”, observa para minha surpresa uma passageira desconhecida do Vila Clara, ônibus que tomamos para chegar na escola, há pelo menos dois anos.

31.
Sentada no banco preferencial do vagão do metrô, a moça se distrai e não vê entrar pela porta uma idosa, que prontamente lhe pede o lugar. Sem vacilar, a moça se levanta e dá o lugar à senhora, que exagera um pouco no agradecimento pela cessão do acento. Despachada, a moça diz que ela não precisa sequer agradecer, uma vez que está “fazendo valer o seu direito”.

32.
Do vendedor ambulante, no vagão do metrô: "hoje tem promoção e pramocinha, é só chamar!".

33.
Desempregado, o passageiro do metrô comemora ao telefone: "hoje o dia vai ser corrido, graças a deus".

34.
Um casal de velhos caminha lentamente pela passarela do metrô Belém, não exatamente de mãos dadas, mas com a senhora segurando numa sacolinha plástica a bolsa coletora de urina do marido doente.

35.
Enérgico com as palavras, o vendedor ambulante do metrô recorre a temas controversos para convencer os passageiros a adquirir aparelhos portáteis de recarga para celular: “não é macumba, não é magia, é tecnologia”. E completa: “ei, você que não quer pagar imposto... é só chamar”.

36.
A moradora do condomínio, ao passar pelo trecho do hall no momento da limpeza, forja simpatia para a faxineira: "tô pisando no seu chão...". Em resposta, a funcionária diz: "imagina"; mas sussurra: "meu que não é este chão, antes fosse...".

37.
Para passar pela catraca do ônibus, a passageira saca da carteira duas notas azuis de dinheiro e três pequenas moedas douradas, supondo estar reunindo em sua mão os R$ 4,30 referentes ao valor da passagem. Ao que a cobradora responde em tom de brincadeira: "eita passagem cara da muléstia!". Pensando que ela se referia aos quatro e trinta da tarifa, a passageira diz que "sim, de fato!", reiterando o quão absurdo é o valor que se paga para tomar um ônibus em São Paulo. Contrariando-a, a cobradora desfaz o bolo de notas e moedas e, na sequência, devolve à pagante uma de suas notas, a de cem reais.

38.
Na catraca do metrô, o rapaz se despede da esposa: "te amo, cuidado".

39.
Colegas conversam no vagão do metrô a respeito do domínio de outros idiomas, além do português. Confiante, a moça comenta com seu interlocutor que "basta ter vontade" para se comunicar em outra língua, independente de estudá-la. Ela própria diz já ter experimentado conversar com estrangeiros, algo que procura incutir na cabeça do colega: "tendo vontade, você consegue... e em qualquer língua: boliviano, peruano...".

40.
O taxista toca sua jornada de trabalho com a televisão do veículo ligada no programa de perseguição policial, o qual ele acompanha com interesse enquanto transporta seus passageiros pela cidade.

41.
Na entrada do restaurante self-service ao pé do metrô Belém, lê-se a expressão: "coma a vontade". Assim, sem crase.

42.
Na rodoviária de uma cidade insondável do interior, sonho que tenho urgência para chegar noutra cidadezinha, cujo nome não lembro, mas que intuo começar com a letra E. Me ponho, então, a perguntar aos poucos presentes na plataforma como faço para chegar lá, e quanto tempo isso levaria. O primeiro diz que a cidadezinha fica a quatro horas de onde estamos, enquanto a mulher da outra ponta, ao ser procurada em função da minha contrariedade com a desanimadora resposta inicial, diz que estamos a apenas dois minutos da localidade almejada. E completa dizendo haver, na estação contígua, um trem direto para lá. Agradeço e corro para a tal estação, que, depois de alguma procura, revela-se inexistente. Volto para a rodoviária, e a única pessoa que encontro é o aborrecido respondente das "quatro horas". Explico a minha pressa ao sujeito, que prontamente apresenta a solução de me levar de carro para a (supostamente) longínqua cidade, pelo valor de dois mil e cem reais.

43.
O vendedor ambulante do metrô, para saudar a iniciativa do passageiro de adquirir seu produto, o adula com a distinção: "aqui está o seu, empresário".

44.
Num misto de indignação e desforra, o faxineiro terceirizado do hospital Sírio-Libanês vocifera em relação a certos pacientes: "a arrogância é que faz isso... tão tudo morrendo de doença feia".

45.
"Quem não tem dinheiro, só tem a vida", lamenta o rapaz diante das dificuldades de sobrevivência material, num cenário de desemprego agudo e de medidas governamentais contrárias aos direitos trabalhistas.

46.
Manhã fria no Terminal Bandeira. Na passarela em direção ao metrô Anhangabaú, o vento corta a pele por baixo da blusa. Uma moça me ultrapassa e chama atenção por sua pouca roupa: um vestidinho que termina em mini-saia. Os ombros também vão de fora. Observada por muitos, ela esclarece em voz alta: "puta não tem frio".

47.
Um grupo de vendedores ambulantes da linha vermelha do metrô, ao se referir aos guardas responsáveis por coibir sua atividade e apreender suas mercadorias, comenta que os mesmos agora andam à paisana. O que se mostra pouco eficaz, uma vez que os marreteiros não só conhecem bem suas figuras, como também atribuem-lhes apelidos: Hulk, Harry Potter, Bruce Lee, são alguns deles.

48.
A dupla de trabalhadores autônomos segue, de metrô, para a estação Carrão, onde visitarão mais um novo condomínio de prédios para oferecer seus serviços de instalação de redes de proteção para janelas e sacadas. Entre ligações e whatsapps, calibram entre si as suas estratégias para angariar clientes, chamando atenção, além disso, para locais pouco promissores para o negócio: "aquele prédio que visitamos ontem só tem pobre, só tem inimigo".

49.
O rapaz comenta com seu colega de trabalho, ao ser perguntado durante a viagem de metrô, que mora em Ferraz de Vasconcelos. Assim que escuta o nome do município, o colega dispara: "longe, hein?!". Mas o ferrazense replica: "depende de onde você olha... se estiver em Guaianases, é pertinho".

50.
Finalizando seu almoço no Ita, o comensal goza do atendente no balcão: "se eu fosse pagar, quanto daria?"

51.
A criança em processo de alfabetização, esperando o ônibus no ponto com seu pai, brinca de ler-escrever palavras escritas nas laterais dos coletivos que ali param para embarcar e desembarcar passageiros. Ao focar numa palavra, ela faz gestos no ar com o indicador da mão direita como que contornando o desenho de cada letra.

52.
Em conversa com o vidraceiro, a proprietária da loja propõe: "o que acha de pensarmos num vidro para o topo da varanda?". Ao que ele retruca: "o problema não é pensar, o problema é conseguir subir lá".

53.
Ao entrar no trem e dar início ao seu pregão, o marreteiro volta o corpo e o olhar, com requintes cênicos, para a ponta oposta do vagão, fingindo encontrar lá no fundo um passageiro interessado em seu produto, e que supostamente o chama. Ao que ele responde, em voz alta, para todos os demais escutarem: "só um instante, que eu vou agora mesmo levar o produto pra você aí no fundo". Antes de "efetivar" essa venda inventada, é comum que algum passageiro o interrompa, de fato, no meio do caminho, solicitando seu produto, de algum modo influenciado pela venda que sequer aconteceu, e que nem acontecerá - aquela do fundo do vagão.

Notas publicadas no blog da Autoescola Insular, projeto de Rafael Paniagua para a 33ª Bienal de São Paulo – Afinidades Afetivas. http://bit.ly/2LsJINq