Somos trabalhadores da arte: artistas, curadores, críticos, galeristas, professores universitários, educadores, produtores, gestores, jornalistas, entre outras ocupações. Nos dizemos sensíveis, criativos, propositores, visionários, ativistas, políticos, socialmente engajados, analistas, arquivistas, mediadores, verdadeiros, delatores, intelectuais públicos. Somos uma classe, um meio, um mundo, ou a recusa de sê-los. Temos ideias, fazemos reuniões e visitas, vamos a aberturas, assistimos e participamos de debates, mandamos e respondemos e-mails, negociamos com fornecedores e produtores, protestamos, legitimamos e somos legitimados, escrevemos, damos entrevistas, viajamos, circulamos, falamos inglês, falamos mal, opinamos sobre vários assuntos, lemos, montamos portfólios e websites, fazemos mestrado e doutorado, atualizamos currículo, damos aulas e palestras. Curtimos, compartilhamos e postamos continuadamente nas redes sociais. Mesmo com posições ou práticas aparentemente distintas, os profissionais do tal mundo da arte estão sempre “trabalhando muito” e envolvidos em vários projetos simultaneamente. Quase nunca tira-se férias, quase não há fim-de-semana ou tempo livre. O trabalho é flexível e precário. O capital, simbólico.
Gozamos desse capital o suficiente para nos encantarmos com nossos objetos ou ações artísticas, acreditando nas suas relevâncias políticas ou transformadoras. No entanto, em grande parte, esses objetos ou ações se limitam ao regime da representação e à circulação dentro do seu próprio meio, indissociável do mercado, via museus, galerias, centros culturais e, a partir da última década, plataformas on-line. Com tempo, o trabalho artístico, então, aborrece. (E aborrece falar sobre isso, portanto, preferimos evitar.)
Se a arte pode aborrecer seus trabalhadores, os produtores legitimados, quem dirá os seus públicos, os consumidores involuntários. Na série de desenhos Diário do busão, expostos na Galeria Virgílio, Diogo de Moraes retrata muitos jovens aborrecidos em contato com a arte: um garoto boceja alto, outro fala em cabular aula, um terceiro diz “tchau” com gosto para uma funcionária ao sair de um museu. Diogo procurou traduzir/documentar, por textos e imagens, as expressões e atuações de estudantes da rede pública de ensino durante visitas a instituições culturais de São Paulo, acompanhando-os em todo deslocamento escola-instituição. As visitas escolares, previamente agendadas, são a política de mediação (e, infelizmente, de marketing cultural) mais comum oferecida pelas instituições culturais via seus departamentos “educativos”, que veem na sentença "acessibilidade e inclusão" sua principal missão. Porém, a dinâmica educacional dessa política costuma se desdobrar unidirecionalmente, de modo que algo já dado como arte (objetos resultantes do trabalho do artista especializado) é imposto para outros (em geral, massas abstratas de pessoas “desprovidas” de cultura e sensibilidade estética). Para os trabalhadores da arte, institucionalizados ou independentes, a exposição é o fim e não o começo de um processo de troca social e cultural.
Mas não é só aborrecimento o que os jovens manifestam no Diário do busão e o que demonstra ser o principal interesse de Diogo. Os estudantes também são retratados como sujeitos singulares, desejantes e criativos: um garoto anuncia que vai fazer uma mágica; o folder da exposição serve de microfone para que outro garoto performe como MC; uma menina se imagina escritora; alguém oferece um "pão especial" feito em seu bairro.
A atenção de Diogo aos modos de produção, distribuição e apreensão artístico e cultural configura um posicionamento muito mais político do que o que outros trabalhadores da arte acreditam assumir. A arte, com a sua promessa de justiça ou transformação social, falha ao não tratar da sua própria organização. Mas já não é mais suficiente a abordagem da tradicional crítica institucional, que, a partir dos anos 1960, apontou simplesmente para os sujeitos e as estruturas dominantes. Seria preciso abrir espaços para que aqueles que são frequentemente nomeados objetos ou espectadores de nossos trabalhos possam também mostrarem-se sujeitos ou autores, com interesses e atividades culturais próprias, diferentes mas não menos importantes do que as dos trabalhadores da arte oficiais. A dificuldade nesse processo encontra-se em abdicar de certos privilégios, como saber especializado, reconhecimento social, posição hierárquica ou poder de decisão. Outro desafio reside no fato de que se antes a subjetividade era algo secundário no capitalismo, hoje ela é vista como um valor essencial para sua sustentação. Logo, reforçamos: se as relações de trabalho e produção de valor permanecem cada vez mais alienadas, confusas ou ocultas, aos próprios trabalhadores e seus públicos, como então identificar a efetividade contrahegemônica da arte (ou da prática institucional) política ou socialmente engajada?
Questões como essa reverberam do Diário do busão. Desconfortável de sua posição como trabalhador da arte, Diogo, sob uma perspectiva às avessas, compreende-se como público, invertendo os lugares de fala e escuta. Fora do seu lugar, orienta-se ao que lhe é externo, estranho, desconhecido, alienígena. Aprendi recentemente que a palavra latina hostis, que define hospitalidade, significa tanto visitante como inimigo, aquele que pode perturbar a ordem de quem o hospeda. O Diário do busão identifica o que há de hostilidade na hospitalidade de boas-vindas institucional, incentivando situações abertas às mais variadas e imprevistas formas de estranhamento.
O formato artístico do resultado desse processo e sua apresentação em espaços oficiais da arte, como a Galeria Virgílio, partem de uma intenção de Diogo em estimular outros do meio a praticarem o mesmo deslocamento, engendrando esferas públicas propícias a interlocuções menos autodeterminadas e mais tensionadas. Nesse sentido, prefiro enxergar o Diário do busão como exercício ou método, que circunscreve, ainda que temporária e pontualmente, outras formas de organização e compartilhamento cultural, onde os trabalhadores e os públicos da arte se diluem e reconfiguram. Em seu extremo, seríamos todos iniciadores de processos, populares e coletivos. Teríamos a mediação como condição inerente e não posterior, onde se estabelece uma troca educacional sem fim em que todas as partes são beneficiadas e transformadas. Identificaríamos juntos problemas, urgências, sintomas de cada local onde nos inserimos. Deixaríamos a autoria e autoridade individual de lado. Saberíamos a hora de nos retirar, de modo a revezarmos nos papéis, sendo conduzidos e não condutores. Perderíamos nossos cânones. Acolheríamos os conflitos e não temeríamos rejeições, atentos a qualquer resposta às organizações iniciais. Lutaríamos por melhores e iguais condições de produção entre os envolvidos. Evitaríamos que pessoas fossem meros objetos do pensamento de outrem. Ofereceríamos nossos conhecimentos individuais para utilização como ferramentas compartilhadas e não de distinção. Reconheceríamos outras técnicas, ritmos, linguagens, agências e produções, sem nos pautar em julgamentos de valor preestabelecidos acadêmica, histórica ou cientificamente. Entenderíamos comunidades como ambientes dotados de cultura e experiências singulares. Articularíamos o passado no presente, suspendendo especulações futuras. Pensaríamos em mecanismos para alimentar a memória coletiva de cada processo e experiência. Veríamos as tarefas domésticas como trabalho; o ambiente privado, o corpo e as relações de gênero como lugar de construção social. Reuniríamos a esfera da vida cotidiana ao ato de criação.
Luiza Proença, em diálogo
2018