Há um rumor que busca outras coisas,
que procura falar de outra maneira, que
murmura outras linguagens. É o som de
uma voz que não quer participar mas
implicar-se no que vive, no que cria,
no que sabe, no que deseja.
Marina Garcés
É manhã bem cedo e o portão da escola se abre, como ocorre diariamente, para receber os alunos. Uma brisa fresca percorre os corredores, enquanto os garotos e as garotas se cumprimentam longe da vista dos pais e sobem às suas respectivas salas de aula. Lá fora, estacionado com as portas fechadas, um ônibus espera o grupo. O motorista, muito tranquilo, lê o jornal enquanto olha pelo espelho retrovisor os carros que buzinam. Lá em cima, na sala de aula, os alunos do terceiro ano sabem que essa manhã não será igual às demais. Hoje, não se sentarão em suas carteiras, nem copiarão frases escritas sobre a lousa, nem escutarão passivos à professora. A docente que os acompanhará na aventura, junto ao professor de Arte, também sabe disso. Na aula anterior, procuraram, sem muito êxito, preparar o grupo para a visita. Depois de meses de espera, irão a um museu de arte localizado na região central da cidade. Lá, uma educadora lhes dará as boas-vindas e os conduzirá pelas obras selecionadas pela equipe educativa da instituição, a fim de lhes contar, por meio de perguntas que convocam ao “diálogo”, o que é um museu de arte e o que ele exibe.
Mas estamos esquecendo de uma parte importante, quase fundamental, deste processo. Voltemos ao ônibus estacionado em frente ao portão da escola. Os estudantes sobem no veículo, alguns gritando, outros correndo. Um casal avança de mãos dadas buscando um banco para se sentar. O momento da viagem de ônibus com os colegas e amigos da escola é algo que todos nós podemos recordar, com mais ou menos nostalgia. Por exemplo, a sensação de adrenalina ao poder sentar-se próxima do garoto que você gosta, ou simplesmente folhear revistas com as amigas – antes da aparição do celular e da internet. Esse traslado de ida e volta à escola, ao qual não se costuma dar muita importância, se torna o principal objeto de estudo para o artista Diogo de Moraes.
Tal como faziam os artistas viajantes nos séculos passados, de Moraes empreende seu próprio périplo junto aos estudantes até a região central da cidade, geralmente desconhecida por muitos deles. Mais do que plasmar paisagens exóticas, o Diário do busão: visitas escolares a instituições artísticas se ocupa de algo que não se entrega tão facilmente à vista. A observação atenta e curiosa que ele reflete revela, a título de exemplo, códigos internos de comunicação entre os adolescentes, como seus cumprimentos com as mãos ou mesmo palavras que inventam. Também alude às roupas e acessórios desses jovens, ao mesmo tempo que interpreta – de perto, mas sem interferir – suas formas de ser e os modos como reagem às ofertas culturais a que são expostos.
Mas sua tarefa não se encerra aqui. O suporte conceitual que elege para a visualização desses comportamentos é o “diário de classe”, utilizado nas escolas para fazer valer as normas e rotinas que regulamentam a dinâmica institucional. Em seu caso, esse formato é transformado num diário dedicado a outro tipo de cotidianidade coletiva, sem regras ou normas preestabelecidas. Ao compartilhar os traslados e a incursão nos espaços culturais com os grupos, o artista procura preservar a espontaneidade dos gestos de seus integrantes, recuperando seus comentários em voz baixa e suas visadas indiscretas, bem como a disposição dos corpos em um espaço determinado.
É neste ponto que podemos retomar algumas noções da “arte participativa”. Ainda que o Diário não se enquadre nessa categoria, a ideia de “participação” atravessa conceitualmente todos os relatos verbo-visuais do artista. De acordo com Claire Bishop, a arte participativa tende a enfatizar os processos em lugar das imagens fixas, dos conceitos ou dos objetos (Bishop, 2012). Isso ocorre quando a participação é pautada pelos artistas e curadores, ou pelos espaços onde ocorrem as ações. Bishop continua: “esse tipo de arte tende a valorizar aquilo que é invisível”. Mas no caso do Diário, os processos e sua consequente visualização se dão quase simultaneamente. Enquanto o artista recupera essa dimensão tácita que se dá por dentro e por fora dos limites institucionais, sua visualização é plasmada em desenhos e palavras. A qualidade da participação é reconfigurada e incide, nesse caso, num processo que se desenvolve nas margens do sistema artístico. Pois o que se passa em tais ônibus e espaços culturais – antes, durante e depois das experiências pedagógicas – não são obras ou proposições predefinidas pelo artista, mas a vida cotidiana de certas pessoas que saem da sua rotina num dia de semana. É aí que se revela, de forma indireta, outro tipo de participação: aquela que é buscada e pautada pelas instituições culturais ao oferecer algo que os visitantes supostamente não possuem.
Continuando com Bishop, a autora propõe que “enquanto a arte se presta a ser observada, a educação não possui imagens”. É aqui que podemos contrapor uma nova leitura sobre as implicações da visibilização de processos vinculados à aprendizagem. No geral, as situações educativas são registradas principalmente através de fotografias de crianças pintando ou colorindo algo em um museu ou espaço de exibição. Lemos socialmente essas imagens como momentos de aprendizagem e criatividade, que no fundo servem aos museus para mostrar que estão socialmente comprometidos com sua comunidade e, dessa forma, poder justificar e viabilizar a arrecadação de fundos. Carmen Mörsch (2011) destaca, por sua vez, a importância de analisarmos a gramática visual contida nessas imagens e, consequentemente, a instrumentalização dos participantes por meio delas.
O Diário do busão dá uma volta nessa situação e mostra a outra face do processo pedagógico. De que maneira? Colocando ênfase no lado dos públicos, observando o uso que eles – neste caso, grupos escolares e seus docentes – fazem das ofertas culturais, como se apropriam delas e as questionam. Isso se dá não só mediante palavras e desenhos, mas por meio de um estudo da proxêmica [2] de seus corpos. A partir de uma posição deslocada, desincumbida da pressão por dar conta de um resultado final buscado pela instituição que recebe os estudantes, de Moraes enfatiza aquilo que mobiliza os corpos e mentes dos integrantes desses grupos, amplificando o que eles trazem à instituição.
Aqui, o aspecto documental esquiva-se do registro fotográfico convencional para trazer à tona, nas palavras do artista, as “discursividades e performatividades dos estudantes”. Mas como isso é alcançado? Neste quesito, me interessa recuperar o termo “Arte de Conduta”, cunhado pela artista Tania Bruguera. Em seu Glossário, ela o define da seguinte maneira:
A Arte de Conduta tem suas raízes na arte conceitual e na performance, mas em vez de se concentrar nos limites da linguagem e do corpo físico explora os limites da linguagem e do corpo social. Arte de Conduta trabalha com as reações e comportamentos que gera naqueles que presenciam e participam da obra, dando origem a um processo onde o público se transforma em cidadão. (Bruguera, 1998)
Se tomarmos essa qualidade performática dos estudantes por meio da tradução de condutas sociais manifestas em diálogos, desenhos e símbolos, torna-se possível acessar outro tipo de documentação dos processos pedagógicos, que vai além de uma atividade ou proposta educativa. Recorrendo a outro termo para suplantar o caráter pretensamente realista ou objetivo da “documentação”, podemos evocar a noção de mitopoiesi, formulada por Bifo Berardi, relativa à “criação de mitologias que reconfiguram as expectativas” (Berardi, 2017). De acordo com o autor, as mitopoiesis revelam possíveis esferas de experiência que não foram experimentadas anteriormente. Vale a pena evocar, aqui, os Episódios contrapúblicos, que o artista reproduz em sua página na rede [3]. Datados e localizados, seus parágrafos narram situações e conversações envolvendo diferentes visitantes de instituições culturais. Ainda que essas narrativas não integrem o Diário do busão, ambos propõem relatos geradores de novas mitologias, ou formas de entender o mundo.
É assim que eu gostaria de concluir este breve ensaio, tomando o Diário do busão como uma obra que não se repete, aberta à experiência, predisposta à sensibilidade e em constante retroalimentação. Testando os limites da documentação pedagógica e performática, o artista desempenha múltiplos papéis ao mesmo tempo, o que lhe permite trazer para o primeiro plano a condição ativa dos públicos, que desse modo escapam do lugar “silenciado” a que são comumente submetidos. Logo, seu processo acaba por reconfigurar a dinâmica que prevalece no momento em que se institucionalizam os comportamentos e as respostas dos públicos. Entre fatos reais, ficções e para além deles, essas dimensões se confundem para dar lugar a um novo universo experiencial.
Renata Cervetto
2017
[1] Em espanhol, a expressão “a destiempo” alude a algo que ocorre fora de um marco temporal determinado.
[2] Trata-se da relação espacial entre pessoas e das manifestações sociais e significantes que daí procedem.
[3] A autora se refere à presente página, especificamente à seção "Episódios contrapúblicos".