Diário do busão: visitas escolares a instituições artísticas resulta de um experimento que articula as práticas do artista e do mediador. Sua operação pressupõe o uso, a modulação e a ressignificação de procedimentos e repertórios que venho desenvolvendo ao longo das minhas trajetórias simultâneas – aqui imbricadas – nos campos da criação artística e da mediação cultural. A elaboração de seus conteúdos envolve a infiltração em ônibus que conduzem turmas de estudantes da rede pública de ensino, ou de iniciativas do terceiro setor, a instituições de arte concentradas no centro expandido da cidade de São Paulo, por ocasião das visitas mediadas às suas exposições, acervos e conjuntos arquitetônicos. Atento às formas de atuação dos estudantes e de seus professores durante os itinerários pela cidade e as visitas propriamente ditas, lanço mão de um tipo de registro e tradução contrainspirado no modelo do “diário de classe”, ferramenta normativa da rotina escolar.
A produção simbólica ensejada e veiculada pelo Diário do busão se faz a partir do interesse por aquilo que os públicos escolares manifestam nos momentos de interação e resposta às oportunidades de acesso promovidas pelas instituições através dos seus departamentos educativos. Minhas infiltrações nessas situações pedagógicas desdobram-se na formulação de relatórios verbo-visuais alusivos a cada visita, delineados com base nas notas e esboços que realizo num pequeno bloco de papel durante o acompanhamento dos grupos. Isso implica a reescrita e o redesenho dessas anotações, num processo que combina fato e ficção.
Em lugar de se comprometer com o binômio conexão-inclusão, a modalidade de mediação cultural colocada em jogo pelo Diário do busão dedica-se à sondagem, tradução e circulação dos índices resultantes dos encontros e desencontros desses públicos com os bens artístico-culturais difundidos pelas instituições, assim como com os discursos e convenções que os medeiam. Desse modo, ele funciona como prática documentária vocacionada a fomentar uma esfera pública específica, propícia à visibilização e problematização das experiências vivenciadas pelos públicos na relação com ações institucionais representativas das políticas de democratização do acesso.
Por outro lado, nota-se que o aparelho institucional propositivo se mantém, no mais das vezes, indiferente ou refratário às reações e respostas dos seus públicos, sobretudo àquelas que se desviam dos planos, discursos e protocolos praticados pelas instituições. Essa responsividade dos públicos se dá na duração temporal, no tempo de visitação às exposições, mas também antes e depois dele. Logo, não conta com prerrogativas espaciais e suportes capazes de fazer repercutir os enunciados engendrados durante tais momentos, inclusive porque tais recursos condizem a privilégios da instituição e das práticas especializadas que lhe dão corpo.
O desaparecimento das formas emergentes, desviantes e, em certos casos, antagonistas de atuação dos públicos mostra-se conveniente a uma retórica cultivada pelas instituições artísticas em torno do seu “inquestionável” papel socioeducativo e pretensamente benéfico ao outro – o não iniciado –, exercido com base na sua missão de difundir os exemplares legítimos da cultura e, assim, buscar garantir o acesso para muitos daquilo que é produzido por poucos, de acordo com o lema da democratização cultural. O Diário do busão surge da desnaturalização dessa lógica e, mais ainda, da necessidade de inserir nos contextos expositivos experimentos extrainstitucionais aptos a operar como dispositivos de escuta e amplificação daquilo que seriam as discursividades, performatividades e táticas praticadas pelos públicos em meio à orquestração institucional, através de desvios semânticos, profanações comportamentais e gestos oposicionais.
Entende-se que dessa encruzilhada – aquilo que as instituições difundem versus os usos que os públicos fazem disso – podem advir reações imprevistas, saberes outros e agendas não coincidentes, capazes de fornecer elementos simbólicos para um exercício de desconstrução de discursos unidirecionais e hegemônicos. A atenção a essa contraface da oferta justifica-se pela tentativa de deflagrar situações em que as próprias instituições e seus agentes se vejam reendereçados por seus públicos, sendo convocados a também aprender com eles.
Diogo de Moraes
2017