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Anedotário públicos dos públicos*

Confrontadores
C1) gatilhos, C2) trocadilhistas, C3) pregadores de peça, C4) iconoclastas, C5) difamadores, C6) porcos, C7) adulteradores, C8) repudiantes, C9) evasivos, C10) silenciosos, C11) aspirantes, C12) indignados, C13) enfurecidos, C14) linchadores, C15) espancadores, C16) acusadores, C17) bolinadores, C18) ladrões, C19) cortineiros, C20) irônicos, C21) rasuradores, C22) fantasmas, C23) bairristas, C24) de prontidão, C25) surradores

Narradores
N1) conspiratórios, N2) fofoqueiros, N3) frustrados, N4) altruístas, N5) evocativos, N6) desaparecidos, N7) edificantes, N8) zombeteiros, N9) artistas, N10) afetivos, N11) emuladores, N12) aquários, N13) criativocionistas, N14) piadistas, N15) fabulistas, N16) ordenadores de afazeres, N17) republicanos, N18) politicamente incorretos, N19) parodistas, N20) licenciosos, N21) imagéticos, N22) esteticistas, N23) compadecidos, N24) desviantes, N25) deturpadores

Obsessivos
O1) vítimas, O2) agitadores, O3) consumistas, O4) gulosos, O5) miradores, O6) aniquiladores, O7) trapaceadores, O8) selfiers, O9) afanadores, O10) que se recusam a partir, O11) loucos de palestra, O12) fotografadores, O13) enlouquecidos, O14) mais interessados no celular, O15) melodramáticos, O16) homofóbicos, O17) devoradores, O18) autistas, O19) sugestionados, O20) eufóricos, O21) decepcionados, O22) miméticos, O23) tementes, O24) militaristas, O25) examinadores

Arbitrários
A1) repressores, A2) desavisados, A3) resistentes, A4) equivocados, A5) mal-entendedores, A6) baderneiros, A7) contaminadores, A8) ignaros, A9) declinadores, A10) improvisadores, A11) tocadores, A12) solitários, A13) esteticamente decaídos, A14) tumultuadores, A15) cismados, A16) confidentes, A17) que querem encontrar dinossauros, A18) admoestadores, A19) explicadores, A20) que correm pelas galerias, A21) sonegadores, A22) manuseadores, A23) canônicos, A24) domingueiros, A25) trepados

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C1) confrontadores gatilhos
Na manhã do dia 06 de setembro de 2017, após regressar de Porto Alegre, o advogado e professor de Direito de Passo Fundo (RS) Cesar Augusto Cavazzola Jr. postou no portal Lócus Online texto no qual denuncia a exposição “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, recém-visitada por ele na capital gaúcha. Intitulado “Santander Cultural promove pedofilia, pornografia e arte profana em Porto Alegre”, a postagem combina o relato escrito com uma série de quinze registros fotográficos realizados pelo autor no ambiente da mostra, focalizando algumas das “cerca de 270 obras que promovem [além da pedofilia e pornografia] os mais variados ataques à moral e aos bons costumes que se possa imaginar”. Considerada a primeira rejeição rastreada à exposição, a postagem serviu de gatilho para que dois de seus leitores, Felipe Diehl e Rafinha BK, acorressem ao centro cultural, ali produzindo vídeos de abominação que prontamente viralizaram nas redes sociais digitais, resultando no fechamento imediato da exposição. Pouco comentado na imprensa e no meio artístico, o texto-gatilho de Cavazzola Jr. chama atenção para aspectos enunciados pelo centro cultural e pela exposição que, a seus olhos, deveriam ser combatidos, a começar pelo “mês da temática LGBTQ no Santander Cultural”, cuja representatividade de gênero apontaria para um cenário desmesurado: “Daqui a pouco vai faltar alfabeto para atender às demandas da sigla.” Mas é também a natureza da arte, e o seu destino, que se encontram no horizonte do advogado indignado com os “ditos especialistas em arte contemporânea”. Para ele, “já há tempos [estes] se distanciaram do verdadeiro objetivo da arte: a consagração do belo”. A “Queermuseu”, segundo sua visão, não só deturpa os propósitos legítimos da arte, como também “perverte o vocabulário da língua portuguesa”, ao passo que lança mão do termo queer para, a um só tempo, escapar da “norma previamente estabelecida” e produzir uma “espécie de norma [outra]”. “[São] mudanças desse tipo no vocabulário [que] geram uma verdadeira confusão irrecuperável na cabeça das pessoas, sobretudo, nos estudantes em processo de formação.” Logo, tanto a arte quanto a língua estariam sendo “pervertidas” nesse projeto que, ademais, é “desenvolvido pela Lei de Incentivo à Cultura, com apoio do Ministério da Cultura e Governo Federal, ou seja, ‘arte’ patrocinada com dinheiro de quem trabalha”. As aspas em “arte” se devem à recusa de Cavazzola Jr. em reconhecer status artístico em “qualquer ato de rebeldia [...] sendo enquadrado como ‘liberdade de expressão’”. Anunciando a verdadeira arte como a melhor “forma de transcender o barbarismo”, o escriba conclama seus leitores à “defesa da civilização”.

C2) confrontadores trocadilhistas
Na série de cartuns de autoria de Pablo Helguera, intitulada Artoons (2008-), o “mundo da arte” é impiedosamente ironizado pelo autor, que dedica especial atenção às reações dos públicos frente à produção artística, aos cacoetes de seus agentes e às lógicas que regem o sistema da arte. Tais “artoons” são amplamente difundidos por diferentes publicações de arte, dos Estados Unidos à Irlanda, passando pelo Brasil, e novos exemplares continuam a surgir regularmente em veículos eletrônicos e impressos. Publicado em 2017 por The Art Newspaper, um deles retrata um casal de idosos nova-iorquinos diante de um trabalho de arte contemporânea no qual se pode divisar grafismos diagonais irregulares. Aos olhos da senhora, o desenho se apresenta “muito apropriado para a temporada de furacões”, ao passo que “é um desastre natural”.

C3) confrontadores pregadores de peça
Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship (2012), estudo de fôlego da crítica e historiadora da arte Claire Bishop, publicado na forma de livro, registra, embora lateralmente e sem dedicar-lhes analises mais detidas, alguns episódios envolvendo gestos estranhos, até mesmo bizarros, manifestos pelo público frente a práticas artísticas participativas. Um deles se passa durante a serata futurista de 12 de dezembro de 1913, no Teatro Verdi, na cidade de Florença. Enquanto insultos e objetos eram lançados contra os artistas no palco – claque sistematicamente estimulada pelos próprios futuristas –, um dos espectadores presentes se dirigiu ao palco e entregou um revólver na mão do líder vanguardista Filippo Marinetti, instando-o a cometer suicídio no palco, diante de todos.

C4) confrontadores iconoclastas
O historiador da arte David Freedberg, em Iconoclasia: historia y psicología de la violencia contra las imágenes (2017), estudo traduzido e editado pela portenha Sans Soleil Ediciones, conta que o esquema de segurança da National Gallery de Londres, em 1912, não foi hábil o suficiente para evitar que a sufragista Mary Richardson “interagisse” com o quadro Vênus ao espelho (1647), de Diego Velázquez, esfaqueando a tela com uma faca de cozinha. Incialmente, a responsável pelo gesto declarou ter rasgado a tela para chamar atenção à causa sufragista. Anos mais tarde, contudo, afirmou que o ataque se deveu à sua aversão ao modo como “os homens se detinham todos os dias diante do quadro e ficavam boquiabertos.”

C5) confrontadores difamadores
No catálogo da exposição "Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira" (2018), editado por ocasião de sua remontagem na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, o curador Gaudêncio Fidelis registra a situação que teria deflagrado o fechamento da mostra em Porto Alegre, pelo banco Santander, 30 dias antes da data prevista para o seu encerramento. Segundo Gaudêncio, a medida tomada pela instituição financeira responsável pelo Santander Cultural decorreu “de apenas dois dias e algumas horas de manifestações do Movimento Brasil Livre (MBL)”. Seus militantes entraram na exposição “produzindo vídeos e fotografias” que serviram de material para a construção de “uma narrativa difamatória de forte caráter moralista sobre a exposição”. Isso, a despeito do fato de eles se basearem apenas nas obras de Adriana Varejão, Bia Leite, Fernando Baril e Antonio Obá. Com base nessa versão que acusava a mostra de fazer apologia à zoofilia e à pedofilia, além de blasfemar símbolos cristãos, tal narrativa fora eficazmente impulsionada mediante sua difusão pelas redes sociais – anabolizadas pelo uso de robôs, manipulação de algoritmos e postagens pagas. A narrativa de Gaudêncio oculta, no entanto, o fato de que os iniciadores da onda detratora não pertenciam ao MBL. Nesse sentido, o relato de Gaudêncio desaparece com o fato de que, na manhã do dia 06, Cesar Augusto Cavazzola Jr., advogado e professor de Direito de Passo Fundo (RS), havia postado um texto de sua autoria num site de perfil conservador. Suas linhas expõem a indignação diante da mostra por ele visitada dias antes, expressando repúdio ao que chamou de “ataques à moral e aos bons costumes”. Sua publicação é a primeira rejeição rastreada à exposição. Dentre as iniciativas subsequentes, destaca-se a de Felipe Diehl, ex-militar e segurança patrimonial de Porto Alegre, que visitou a mostra no dia da postagem de Cavazzola Jr. Em vídeo gravado no espaço expositivo, ele classifica as obras de “putaria” e “sacanagem”, além de abordar educadores da exposição, perguntando se eles eram “tarados” ou “pedófilos”. Amigo de Diehl, o blogueiro Rafinha BK também filmou obras in loco, fazendo comentários que as abominavam. Os vídeos viralizaram a partir de suas postagens no dia 08, sendo sucedidos por um sem número de manifestações de repúdio à mostra, incluindo as do MBL – grupo tido por Diehl e BK como “socialista fabiano [sic]”.

C6) confrontadores porcos
Em Artificial Hells (2012), Claire Bishop reporta uma passagem do artista Wassily Kandinsky, o qual recorda que durante exposição numa galeria em Munique, em 1910, o dono do estabelecimento se queixava de que quase todos os dias, após o expediente, tinha de limpar as telas modernistas sobre as quais visitantes haviam cuspido. O artista se lembra desse fato como algo menos pesado do que quando o público chegou ao ponto de rasgar suas telas com objetos cortantes, durante uma de suas exposições individuas do período.

C7) confrontadores adulteradores
Em Públicos em emergência: modos de usar ofertas institucionais e práticas artísticas (2017), dissertação apresentada à ECA-USP, registramos uma contribuição idiossincrática ao projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? (1994-2017), do artista Ricardo Basbaum, que tinha como principal dispositivo um objeto em metal esmaltado intitulado NBP (Novas Bases para a Personalidade). Nesse trabalho em processo, o artista emprestava o objeto para colaboradores que o levavam para casa, experimentando e registrando os usos que dele faziam. Disponibilizada essa documentação para integrar o site do projeto, o objeto era devolvido para o artista, que o emprestava a novos colaboradores. Entre 2003 e 2005, porém, o objeto-dispositivo teve seu curso interrompido: a peça fora emprestada em 01/10/2003 para o grupo Vaca Amarela, à época formado por estudantes (anônimos) de arte da UDESC. Descumprindo o acordo e frustrando as expectativas do projeto, o Vaca Amarela decidiu promover a doação do objeto, enquanto “obra de arte”, para o Museu de Arte de Santa Catarina – MASC, adulterando o “contrato” estipulado pelo artista e provocando um “curto-circuito” em sua proposição.

C8) confrontadores repudiantes
“Ditadura feminista” foi o termo usado pelos representantes do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira – IPCO para identificar e protestar contra a “radicalidade” encarnada por Espacio para abortar (2014), proposição artística do coletivo boliviano Mujeres Creando para a 31ª Bienal de São Paulo, “Como (...) coisas que não existem” (2014). Situada na entrada do pavilhão expositivo, a instalação homônima veiculava, por meio de fones de ouvido, depoimentos de mulheres a respeito do aborto. Fundado em 2006 e formado por discípulos do líder católico brasileiro de mesmo nome – expoente da Tradição, Família e Propriedade (TFP) –, o IPCO encarou o trabalho das artistas como um “sacrilégio”, uma ofensa aos valores da “família natural, baseada no casamento monogâmico e indissolúvel entre um homem e uma mulher”, conforme nota de repúdio publicada no site do instituto. Seus atos de rejeição ao Espacio e às ações promovidas a partir dali envolveram a presença de dois representantes homens do IPCO em uma “passeata-performance pública e participativa”, assim divulgada pelos canais da Bienal, mobilizada por Mujeres Creando contra aquilo que definem como “a ditadura do patriarcado sobre o corpo da mulher”. O evento foi realizado no Parque Ibirapuera, no dia 06 de setembro de 2014, nas adjacências do pavilhão. À paisana, os representantes do instituto tinham como propósito documentar em vídeo a passeata-performance, que envolvia uma grande estrutura em forma de útero, em volta da qual se formou numerosa roda de conversa sobre questões relacionadas à prática do aborto. Instantes após o início da gravação, um dos curadores da mostra, cujo rosto aparece desfocado na edição do vídeo do IPCO, abordou o portador da câmera, afirmando que ele não poderia filmar o evento. Contra-argumentando que aquele é um espaço público, o rapaz insistia em seguir filmando. O curador disse então que, de acordo com a lei, ele não poderia filmar o rosto das pessoas sem a devida permissão das mesmas, observação interrompida por uma militante feminista, que pediu a palavra: “Deixa eu falar pelas mulheres. Esse é um evento para mulheres, mulheres clandestinas, sobre um assunto criminalizado. Pode filmar a minha cara. Olha, sou aborteira, filma a minha cara” (o rosto da militante também aparece desfocado no vídeo). Aos gritos de “fora, fora”, “vocês não são bem vindos”, “fora pró-vida”, “aqui só participa quem a gente quer”, os membros do IPCO foram enfrentados por uma parte das mulheres, algumas encapuzadas, que tentavam arrancar as câmeras de suas mãos, ao mesmo tempo que os enxotavam para longe da roda. Com a chegada de guardas civis, a dupla assentiu em se afastar do local e ir embora, ao som de vaias e expressões de revolta verbalizadas por algumas participantes.

C9) confrontadores evasivos
Em “O problema dos museus”, ensaio do poeta e escritor Paul Valéry publicado na coletânea Pièces sur l’Art, no ano de 1931, sob o título “Le problème des musées”, e republicado pela revista Ars, em 2008, com tradução para o português da professora e crítica Sônia Salzstein, o autor inicia com a declaração: “Não gosto tanto dos museus.” A afirmação vem acompanhada da descrição do modo como ele é recebido logo que cruza a porta de entrada desse equipamento destinado à guarda, à conservação, à classificação e à exibição dos bens artísticos: “Ao primeiro passo que dou na direção das belas coisas, retiram-me a bengala, um aviso me proíbe de fumar.” Sentindo-se logo de cara constrangido, ele conta que a sua voz se altera automaticamente no interior do museu, mantendo-se num delicado equilíbrio entre o tom que adquiriria em uma igreja e o timbre da vida cotidiana. Ali, o poeta se vê envolvido por “um tumulto de criaturas congeladas”, em alusão à pletora de “retratos”, “marinhas”, “cozinhas” e “triunfos” representados por grandes artistas sobre as telas que, copiosamente justapostas à esquerda e à direita de seu caminho, “solicitam de toda parte a minha indivisível atenção”. É como se cada uma dessas cenas pintadas exigisse a inexistência das demais, numa briga pelo desbaratado foco do visitante. A analogia disso aparece na constatação de que “o ouvido não suportaria dez orquestras ao mesmo tempo”. Em seu passeio atulhado de belezas impossíveis de serem fruídas, esse dândi vai se conduzindo e oscilando “como um bêbado entre balcões”. Paradoxalmente “violentado” por coisas tão belas, ele percebe que, em lugar de inspirar-nos, “nossos tesouros nos oprimem e aturdem”. Valéry se diz perdido e solitário diante de tanta beleza junta, ou pior, “contra tanta arte”, sucumbindo a ponto de admitir a superficialidade a que devemos nos abandonar e resignar em meio às obras transformadas em simples documentos acumulados, em meras informações visuais. Zonzo e trôpego, ele diz “adeus” e abandona o templo daquelas que deveriam ser as mais “nobres volúpias” para os sentidos dos seres afeitos à experiência estética.

C10) confrontadores silenciosos
Em “Artificial Hells. Inauguration of the ‘1921 Dada Season’”, espécie de obituário escrito por André Breton para a Temporada Dada em Paris naquele ano, traduzido para o inglês por Matthew S. Witkovsky e republicado em 2003 pela revista October, o leitor é apresentado à cena literária parisiense de fins dos anos 1910. Breton conta que, em 1919, ele, Guillaume Apollinaire, Blaise Cendrars, Louis Aragon, entre outros nomes, recitavam seus poemas quase que diariamente para o mesmo público, em diferentes salões da cidade, onde via de regra eram aplaudidos. Com a chegada do endiabrado Tristan Tzara a Paris, em janeiro de 1920, o cenário mudaria bastante, com o tipo de adesão do público se alterando profundamente. Na matinê do dia 23 daquele mês, na estreia do poeta romeno no círculo parisiense, o mesmo leu não um poema, mas um artigo político acompanhado de uma campainha elétrica que se sobrepunha à sua voz, tornando-a inaudível. Breton e seus pares, assim como o público, logo adquiriram gosto pela coisa, a ponto de as sessões funcionarem como palco para provocações mútuas, com gritos e projéteis sendo metodicamente lançados pela plateia em direção aos poetas, que por sua vez testavam a paciência dos presentes com os mais diversos artifícios “poéticos”. Tratavam-se de situações que se retroalimentavam, com os poetas se sentindo tão mais lisonjeados quanto mais suas audácias e eles próprios eram atacados pelo público. Havia uma estranha, e estrondosa, cumplicidade em tudo aquilo. Em meio a esse alarido, eles não contavam, todavia, com “o sorriso silencioso” permanentemente cultivado pela Sra. Rachilde, pseudônimo de Marguerite E. Valette, durante as espalhafatosas sessões Dada. Publicando artigo no jornal Comœdia, em 1º de abril de 1920, com o título homônimo de “Le sourire silencieux”, a contrafeita espectadora instava seus compatriotas a não devotarem qualquer atenção a Dada. Passado um ano da campanha orquestrada pela Sra. Rachilde, que era uma figura influente, o próprio Breton já não acreditava na efetividade daquela balbúrdia niilista, chegando à conclusão de que a vulgaridade das cenas de cabaré não poderia levar o grupo de Paris muito longe. A Temporada Dada de 1921, aliás, representava uma mudança de direção, envolvendo excursão à igreja de Saint-Julien-le-Pauvre e o Julgamento de Maurice Barrès, com este último evento contando com a total adesão da Sra. Rachilde, que não só atendeu ao chamado do grupo como também o elogiou publicamente.

C11) confrontadores aspirantes
Dirigido por Andréa França e Ana Tereza Jardim Reynaud, o documentário Presente dos Deuses (2000) enfoca a relação de guardas patrimoniais terceirizados com as exposições de arte contemporânea realizadas no local onde trabalham: o Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Baseado em entrevistas com quatro deles, o filme adota o argumento de que a convivência diária com arte enriquece a experiência de vida desses profissionais da segurança, em sua maioria apartados do universo artístico. A exceção nesse quesito fica por conta de Luiz Antonio da Silva, vigilante negro que, além de afirmar o seu orgulho por trabalhar no lugar onde foi assinada a Lei Áurea, declara: “Existe um artista dentro de mim”. Ciente das complexidades envolvidas no exercício dessa posição, ele pondera: “Mas eu só passo a ser esse artista no momento em que eu exponho”. Sabe-se, por seu relato, que Luiz desenvolve um trabalho em desenho, o qual pretende expor algum dia. Por uma decisão de roteiro, ele é colocado para entrevistar o artista visual Maurício Ruiz, cuja obra encontrava-se em exibição no Paço Imperial naquele momento. Fardado, o vigilante dispara em direção ao artista todo de branco, em sua roupa e presença: “Agora, em termos financeiros, como é que o artista consegue?”

C12) confrontadores indignados
Registrando no corpo a corpo ações de pichadores e os confrontos por elas detonados, o documentário Pixo (2009), dirigido por Roberto T. Oliveira, traz uma intervenção coordenada por Rafael G. Augustaitiz, codinome Pixobomb, na faculdade Belas Artes, em São Paulo, no dia 12 de junho de 2008. A ação ocorreu na noite de inauguração da exposição da turma de formandos do bacharelado em artes visuais, da qual Rafael fazia parte, como bolsista. O ato teve início com um pichador encapuzado escrevendo com spray em um painel da mostra: “Se vc f...”, frase interrompida pelo empurrão desferido contra o escriba por um rapaz indignado com aquela forma de inscrição. A câmera registra, além dessa reação, uma aluna aos prantos, gritando: “Era o meu trabalho, seu filho da puta... sai daqui, sai daqui... prende esse filho da puta, meu.” O “meu”, no caso, era o segurança que foi chamado para arrancar o pichador da galeria. Sua retirada do prédio foi a senha para outros quarenta jovens iniciarem uma onda de pichações no interior e na fachada do edifício principal da Belas Artes, rabiscando letras pontudas, tags, símbolos, figuras e frases como: “Abra os olhos e verá a inevitável marca na História.” A investida provocou a troca de socos e pontapés entre seguranças e pichadores, até a chegada da polícia, que levou sete pichadores presos – incluindo Rafael. Os demais fugiram. As marcas deixadas nas paredes estimularam, por sua vez, comentários de repúdio da parte de alunos, professores e funcionários da instituição, com destaque para as palavras de José Campos de Oliveira, chefe da segurança: “Isso é coisa de incompetente, pessoas frustradas, cara que não vê objetivo na vida, analfabeto. Pô, beleza é o pôr do sol, as cores no espectro maior, solar, luz branca, de onde vêm as cores que nos alegram no dia a dia. É a arte, e não essa porcaria.” Também houve tempo de ouvir uma estudante na calçada da rua Dr. Álvaro Alvim, que diz: “Que merda é essa? Vai pichar na sua casa, velho.” Matéria do jornal Folha de S.Paulo reproduziu, no mês seguinte, parte da carta encaminhada pela professora de Rafael, Helena Freddi, ao reitor da faculdade: “Considero criminosa a ação do aluno. Não considero essa ação como arte. Não considero a possibilidade de aceitar essa manifestação como trabalho de conclusão de curso”, parecer que integrou o dossiê preparado pela comissão interna montada para avaliar o caso, e que acabou decidindo pela expulsão do aluno.

C13) confrontadores enfurecidos
O site do artista João Loureiro, em seção dedicada a seus trabalhos, documenta um projeto desenvolvido por ele em 2008, a convite do Centro Cultural São Paulo – CCSP. Intitulada O fantasma (2008), a proposição site-specific resultou em uma única fotografia, a qual registra operação envolvendo a cobertura com “roupas de fantasma” – tecidos brancos marcados com duas pequenas manchas ovais pretas – dos móveis, dos objetos e das pessoas de uma determinada área técnica desse centro cultural público. Parte de um programa interno voltado a estimular maior integração entre os diversos setores da instituição, a imagem enfureceu parcela dos funcionários, que exigiu providências imediatas de Martin Grossmann, diretor da instituição à época. Após idas e vindas entre a Direção do CCSP e a Secretaria Municipal de Cultura, a fotografia foi retirada de exposição antes do período previsto, sob ordem do então secretário Carlos Augusto Calil.

C14) confrontadores linchadores
Estampada na edição de 08 de junho de 1931 do jornal Correio da Tarde, a matéria “Lyncha! Lyncha! Gritou a multidão” documenta a reação inflamada de fiéis católicos à Experiência nº 2, do artista Flávio de Carvalho. Realizada no Centro da cidade de São Paulo, na praça do Patriarca, quando por ali passava uma procissão de Corpus Christi, a ação fazia parte dos estudos do artista acerca da psicologia das multidões. Seu intuito, conforme reporta o jornal, era testar o grau de agressividade da massa religiosa quando exposta a situações discrepantes de seus dogmas e liturgias. Respeito aos direitos civis ou adesão irrestrita às crenças, o que falaria mais alto numa circunstância de desobediência ao ritual católico? Mantendo seu chapéu na cabeça e caminhando em sentido contrário ao do cortejo, o artista provocou a fúria dos devotos, que passaram a bradar “péo, péo, péo”, onomatopeia incitadora de linchamentos. Na iminência de ser espancado, Flávio de Carvalho deu um jeito de escapar, refugiando-se no saguão da leiteria Campo Bello, na rua São Bento. Fechado naquele dia, o estabelecimento comercial foi adentrado pelo artista através de um buraco na janela.

C15) confrontadores espancadores
Em Artificial Hells (2012), Claire Bishop relata um episódio envolvendo o happening Meat Joy [Alegria da carne], de Carolee Schneemann, ocorrido no primeiro Festival de Livre Expressão, em Paris, no ano de 1964. Na ação da artista, o público era exposto a gestos de transgressão física envolvendo performers seminus se contorcendo ao som de música pop, enquanto se lambuzavam com tinta e peças de frango e peixe crus. A despeito da excentricidade da cena protagonizada por Schneemann e seus pares, algo ainda mais estranho irrompeu durante o acontecimento: um homem subiu no palco e começou a estrangular a artista, batendo sua cabeça contra a parede do fundo. Mais terrível ainda foi que o público se manteve atônito e paralisado por um bom tempo, sem saber se a agressão fazia parte do script, ou não.

C16) confrontadores acusadores
No texto de introdução do livro Sobre as ruínas do museu (2005), o historiador e crítico de arte Douglas Crimp beneficia-se, em termos analíticos, da famosa acusação feita pelo senador “de extrema direita” Jesse Helms a fotografias de autoria de Robert Mapplethorpe. Baseada na visão do senador – que enxergava nas fotos de nus masculinos um encadeamento entre homoerotismo, obscenidade e exploração sexual de crianças –, a acusação resultou numa lei que, a partir de 1989, passou a controlar os recursos federais para as artes nos Estados Unidos, inclusive no sentido de barrar projetos com temática homossexual. Até aquele momento, Crimp percebia na apropriação feita por Mapplethorpe do “estilo clássico”, notável em seus retratos de corpos nus, uma forma de o artista alinhar-se à tradição artística, renovando-a em termos estéticos. Para surpresa do crítico, a acusação de Jesse Helms abria outra perspectiva para a compreensão do trabalho de Mapplethorpe, uma vez que fora o senador, e não o próprio Crimp, o primeiro a sugerir, embora indiretamente, que a obra do fotógrafo na verdade “interrompe a tradição”, caracterizando o erotismo como algo “abertamente homossexual”. Enquanto Crimp via os nus de Mapplethorpe pela ótica dos gêneros da arte – particularmente, a natureza-morta e o retrato –, o senador os enxergava “no contexto das imagens abertamente homossexuais”, exigindo deslocamentos por parte da crítica: da “estética de uma cultura tradicional de museu” para “uma subcultura gay autodefinida”.

C17) confrontadores bolinadores
Em seu ensaio “Cultura e política, 1964-1969” (1975), Roberto Schwarz comenta a manutenção e até o crescimento da hegemonia cultural da esquerda no Brasil pós-64, “apesar da ditatura da direita”. É nesse contexto que o autor comenta o ciclo inicial do Teatro Oficina, cujos espetáculos “fizeram história, escândalo e enorme sucesso em São Paulo e Rio”. O boom se deu por conta, e a despeito, da exposição do público a cenas de brutalidade marcadas pelo “choque profanador”. Assim, era comum (ainda é) que o espectador da primeira fileira fosse agarrado, bolinado ou esbofeteado pelos atores e atrizes, situação inicialmente chocante aos menos avisados, mas prontamente incorporada pela plateia como parte do jogo. Ali, conforme o crítico, “o espectador é tocado para que mostre o seu medo, não seu desejo”, ao passo que sua “fraqueza” é açulada e destacada em detrimento de seu “impulso” de ação. Daí que, nas antípodas desse efeito previsível, ocorra a Schwarz imaginar uma situação em que o espectador não se deixe intimidar, liberando-se para “tocar uma atriz”. Neste caso, adviria todo um “desarranjo na cena, que não está preparada para isto”.

C18) confrontadores ladrões
Em Asalto armado al Museo de Bellas Artes (1970), a curadora e escritora Élida Salazar relata uma ação da guerrilha urbana venezuelana envolvendo obras de grandes nomes da arte europeia. Por ocasião da exposição “Cien años de pintura en Francia”, realizada no início dos anos 1960 em Caracas, um grupo entrou armado no museu por volta das 15h, enquanto cerca de quatrocentos escolares realizavam visitas guiadas à mostra, num dia de semana. Em menos de trinta minutos, os portadores das armas de fogo arrancaram cinco quadros da parede, que somavam algo em torno de 50 milhões de dólares. As pinturas eram de autoria de Van Gogh, Gauguin, Cézanne, Picasso e Braque. Durante as investigações sobre o roubo, os voos nacionais e internacionais foram cancelados na Venezuela, que se tornou foco da atenção mundial. Semanas antes, o presidente do país havia declarado guerra contra o Partido Comunista da Venezuela, que por sua vez reagiu intervindo em um evento de grande importância para a diplomacia do país. Depois de permanecerem desaparecidas por aproximadamente 74 horas, as obras foram recuperadas, possibilitando que a exposição fosse reaberta ao público – embora por somente mais cinco dias.

C19) confrontadores cortineiros
Arte censura liberdade: reflexões à luz do presente (2018) é um livro organizado pela crítica e curadora de arte Luisa Duarte, reunindo mais de duas dezenas de contribuições, entre textos e entrevistas, de agentes da arte no Brasil que discutem os atos de abominação dispensados a exposições artísticas, no segundo semestre de 2017, deflagrados por atores de extrema-direita. Na Introdução ao compêndio, Duarte não economiza insígnias para caracterizar, e denunciar, a enxurrada detratora e seus protagonistas, lançando mão de noções como “cerceamento da liberdade de expressão”, “censura”, “neofascismo”, “onda reacionária”, “ataque à arte”, “força brutal”, “política de aniquilamento das diferenças”, “política da morte”, “necropolítica” e até mesmo “guerra cultural”. Contudo, após usar toda essa bateria em prol da resistência artística, a crítica afirma que a opção pela agenda moral, fulcro dos ataques às exposições, se presta a “uma dinâmica que fabrica uma espécie de cortina de fumaça com o objetivo de encobertar uma agenda mais ampla”. Talvez ela não tenha se dado conta de que a própria agenda moral é a “agenda mais ampla” para os setores reacionários (e não somente para estes, diga-se), ligada à batalha pela verdade.

C20) confrontadores irônicos
Na mesma semana em que a exposição “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” (2017) foi antecipadamente encerrada pelo Santander Cultural, em função de forte pressão exercida por parcelas conservadoras da sociedade, a Rádio Guaíba, de Porto Alegre, através do seu programa Esfera Pública, promoveu um debate ao vivo entre o curador da exposição, Gaudêncio Fidélis, e dois representantes do Movimento Brasil Livre – MBL, Paula Cassol e Arthur do Val. Registrado em áudio e vídeo, o programa pode ser encontrado, na íntegra, no YouTube. Ali, no trecho inicial da gravação de uma hora e meia, vê-se que enquanto o curador da mostra censurada explicava, a pedido do apresentador do programa, a natureza da exposição, Arthur do Val fazia anotações em uma folha de papel. Entre as notas, é possível que estivessem fragmentos da fala de Gaudêncio como: “É uma exposição de grande envergadura”; “Foi criada para tratar de um conjunto de problemas artísticos que acho fundamentais para a contemporaneidade”; “Possui alto teor acadêmico.” Conhecido pela virulência ressentida de seus posicionamentos públicos, veiculados em seu canal de YouTube intitulado “Mamãe Falei” (expressão que também lhe serve de apelido), Arthur do Val toma como gancho de suas condenações à exposição e ao curador as afirmações autoelogiosas deste último. Em sua acelerada e monolítica explanação, o ativista de direita começa dizendo que “em uma parte eu concordo com o curador... quando ele diz que a exposição é de alto teor acadêmico”. Ironizando não ter a mesma capacidade para entender esse teor, e nem gozar de nível intelectual suficiente para debater com o eminente curador, Mamãe Falei dispara: “Talvez eu ainda não tenha entendido a genialidade [presente] em um homem fazendo sexo com cabritos, exposto para crianças, e numa roupa [O eu e o tu (1967), de Lygia Clark] em que as crianças podem se tocar e explorar as sensações dos seus gêneros, ainda que opostos a seus corpos de nascença.”

C21) confrontadores rasuradores
Em Iconoclasia: historia y psicología de la violencia contra las imágenes (2017), estudo do historiador da arte David Freedberg traduzido para o espanhol pela editora argentina Sans Soleil, ficamos sabendo que Storyville Portrait (c. 1912), série do fotógrafo norte-americano E. J. Bellocq, teve parte de seus retratos mutilado. Melhor dizendo, teve os rostos de prostitutas de bordéis de Nova Orleans, estampados nas fotos, suprimidos por um nervoso gesto gráfico de apagamento. Valendo-se de tinta preta e, ao que tudo indica, de uma pena, o autor das rasuras coibia, conforme o historiador, os traços mais evidentes da personalidade das modelos e, portanto, aquela que seria a “expressão animada” das mesmas. Mais do que isso, “arrancava-lhes a individualidade que poderia ter feito delas figuras sedutoras”, inclusive para aquele que as censurou. O mais surpreendente da análise de Freedberg, contudo, é que ele toma esse conjunto de fotografias rasuradas como um (novo) objeto de fruição, de saída incômodo. Ele diz, nesse sentido, que “ver esse tipo de imagens atacadas e danificadas sempre provoca um choque” nos espectadores de segunda geração, os quais “de certa forma percebem que esses ataques não se aplicam apenas aos corpos que eles veem, mas também, de maneira perturbadora, sobre seus próprios corpos”.

C22) confrontadores fantasmas
Em “A hora das instituições”, artigo publicado em 2018 na revista Jacaranda (Brazilian Art Under Attack!) e, no mesmo ano, no livro Arte censura liberdade: reflexões à luz do presente, o historiador da arte Sérgio Bruno Martins recorre a uma imagem usada pelo artista britânico David Batchelor para descrever a relação entre a arte contemporânea e o público: “um encontro às escuras com um fantasma”, no sentido de uma aproximação fantasiosa repleta de não reconhecimentos. Martins evoca tal cena alegórica logo no início de seu texto, para tratar dos ataques a exposições de arte no Brasil, fenômeno que irrompeu e se avolumou vertiginosamente no segundo semestre de 2017, tendo na exposição “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” o primeiro alvo de setores reacionários da sociedade brasileira. O historiador afirma que, na mencionada conjuntura, a descrição de Batchelor “ganha[va] verdadeiros contornos de filme de terror”, ao passo que essa quimérica película documental apresentava “artistas, curadores e instituições perdidos e assustados numa escuridão repleta de fantasmas demasiado reais”. Guiados pela moral familiar e por dogmas cristãos, esses espectros “do bem” deflagraram ataques verbais e físicos a funcionários e frequentadores de museus, ameaças de morte a artistas, convocações a curadores para depor e abaixo-assinados pedindo o fechamento de instituições de arte.

C23) confrontadores bairristas
Por ocasião da chamada pública para o “Dossiê – Censura e Políticas Culturais” (2018), organizado por Cayo Honorato e Graziela Kunsch para o periódico acadêmico Políticas Culturais em Revista, procuramos Daniela Labra para realizar uma entrevista a respeito dos ataques dirigidos a obras da segunda edição de Frestas – Trienal de Artes, “Entre Pós-Verdades e Acontecimentos” (2017), em cartaz no Sesc Sorocaba, pela qual ela respondia como curadora geral. Intitulada “Públicos controversos – Entrevista com Daniela Labra” (2018), a contribuição incorporada ao dossiê extrapola a questão dos ataques baseados em questões morais de gênero e sexualidade, também incidentes naquele contexto, para jogar luz sobre outros questionamentos endereçados à mostra. Um deles – registrado no Departamento de Reclamações (2016-), proposição artística do coletivo norte-americano Guerrilla Girls composta por ampla superfície em forma de “quadro negro”, onde os visitantes da Trienal podiam deixar anotados os seus protestos, publicizando-os – referia-se à queixa de um habitante da cidade do Interior paulista: “Abaixo a artistas outsiders e prepotentes, que ficam duas semanas na cidade e acham que veem e compreendem melhor a cidade do que os próprios moradores. Mais humildade!” O cidadão sorocabano referia-se a intervenções artísticas realizadas além dos muros do Sesc, em diferentes espaços da cidade. De acordo com a curadora, tratava-se de estabelecer uma relação em nível mais estrutural com o contexto local, mediante trabalhos comissionados pela Trienal, e que, em vez de duas semanas, os artistas forasteiros permaneciam pelo período de um mês em residência no município, estudando-o e arquitetando suas intervenções.

C24) confrontadores de prontidão
No texto “Da rejeição à arte contemporânea para a guerra cultural”, Nathalie Heinich (2022) lança mão de um exemplo pitoresco para ilustrar o vigor com que se dão os protestos cívicos em torno da arte contemporânea nos Estados Unidos. Ocorrida em Chicago, a mobilização reportada pela socióloga chama atenção pela rapidez e eficácia com que repeliu uma obra do estudante de arte David Nelson, a qual desafiava as identidades negras e homossexuais. Exibida na galeria da escola do Art Institute of Chicago, na exposição anual dos estudantes, em 1988, a pintura Mirth and Girth [Hilaridade e circunferência] trazia um retrato grosseiro, de corpo inteiro, de Harold Washington, primeiro prefeito negro dessa metrópole. Obeso, ele aparece vestido apenas com roupas íntimas femininas brancas e rendadas, segurando um lápis na mão e olhando desoladamente para o espectador. Dispostas a defender suas causas, organizações civis que se sentiram ultrajadas acionaram vereadores da cidade, que prontamente se dirigiram à escola. Um deles, ao entrar na exposição, deixou claro que portava uma arma de fogo, enquanto outro removia o quadro de lugar, apoiando-o no chão, de frente para a parede, como se colocasse a pintura de castigo. Com a saída da dupla de vereadores do espaço expositivo, um estudante pendurou novamente o quadro em seu lugar. Outros três vereadores baixaram na exposição, agora para tentar retirar o quadro da escola. Impedidos por um funcionário, os políticos desviaram o caminho e levaram o quadro – cuja tela já apresentava um corte de 13 centímetros – até o escritório do diretor da escola. Um dos vereadores ameaçou queimar a obra no gabinete do diretor, mas foi dissuadido por um tenente presente no local. Após consultarem o superintendente da polícia municipal por telefone, os intercessores foram orientados a levar a pintura sob custódia policial, com base na alegação de que ela fazia “incitação ao motim”. De posse da obra embrulhada em papel pardo, os vereadores se dirigiram a um carro de polícia estacionado na porta da escola. Essa movimentação foi transmitida pela televisão, que difundiu o incidente, com os gritos e acusações trocados entre vereadores e estudantes. Enquanto os primeiros carregavam a pintura para o veículo da polícia, os alunos os chamavam, aos berros, de “filisteus” e “fascistas”. Após a deflagração da controvérsia, dezessete ameaças de bomba foram registradas na escola.

C25) confrontadores surradores
Em seu romance Solução de dois Estados, o escritor Michel Laub (2020) narra um episódio em que a artista performática Raquel Tommazzi é vítima de uma surra pública. O caso se passa em um evento promovido pelo Instituto Cultural Pontes, braço do Banco Pontes de fomento à cultura (via leis de incentivo fiscal), no Hotel Standard, em São Paulo, a duas quadras da avenida Paulista. Ocorrido no dia 6 de fevereiro de 2018, o quinto da programação da primeira edição da “Semana Pontes de Cidades e Convívio”, o debate “O corpo político” reuniu Ieda Sonda, presidente da Associação Interamericana de Mulheres Vítimas da Violência no Trabalho, Gabriel Novais, pesquisador do Instituto Democracia e Memória, e a performer Raquel Tommazzi – para quem se tratava de “um simpósio de gente bem-intencionada”. O relato da surra se dá em primeira pessoa, com a vítima contando que o ataque sofrido por ela fora filmado por pessoas da plateia de seiscentos lugares, que estava praticamente lotada. Nenhum dos presentes interviu no ato de brutalidade, e nem sequer acionou a segurança do local para fazê-lo. O vídeo de celular gravado da quinta ou sexta fileira mostra a artista obesa apanhando no palco, de um homem que portava uma barra de ferro. No registro é possível testemunhar os golpes sofridos por Raquel, o primeiro na altura do peito e o segundo dirigido ao seu rosto. O estrago da segunda pancada não foi maior porque a vítima (sobrevivente, na verdade) conseguiu colocar a mão na frente, o que não impediu que seu nariz fosse amassado e entortado. Raquel conta, ainda, que após largar a barra o agressor continuou desferindo socos e chutes contra ela, diante da atenta e omissa plateia. Sobre os golpes iniciais e finais, a artista se pergunta: “Apanhei como uma cadela, uma galinha ou uma vaca?” Para logo responder: “Eu acho vaca a palavra certa. Porque é isso que uma mulher gorda sempre vai ser.” Era isso, aliás, que o agressor dizia a ela no instante da agressão: “Quer apanhar, Vaca Mocha?”

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N1) narradores conspiratórios
O youtuber Gon Nazareno postou, em 30 de setembro de 2017, depoimento na plataforma YouTube no qual usa a perfomance La bête (2015-), do artista Wagner Schwartz, apresentada na inauguração do 35º Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP, para expor visões conspiratórias e assumidamente conservadoras. Em seu vídeo-depoimento, Gon diz que a ação do performer nu faz parte de um processo tocado por gente “astuta e calculista”, que, baseada na defesa da liberdade de expressão, estaria deturpando a sociedade há séculos. O jovem diz que esse processo se iniciou com o Renascimento, passando pelo Iluminismo, até chegar no estágio em que a Ciência negou a Igreja e que o Estado veio a ser exigido como laico. Segundo ele, é de “reforminha em reforminha” que esse “povo de esquerda” vai “estragando com tudo”. Tal arco de mudanças, em que “todo mundo tem liberdade de fazer o que quiser, buscar felicidade e blá-blá-blá”, passou, conforme o youtuber, pela Nova Esquerda nos Estados Unidos, com as demandas por legalização do casamento gay, das drogas e do aborto, culminando na “ideia de que o gênero é uma construção social, e não [um fator] biológico”. Sobre a performance “nesse novo museu [sic], o MAM”, ele assevera: “E agora já vem com pedofilia disfarçada de arte”, emendando: “Daqui a pouco já está entrando no Congresso [Nacional] a proposta de legalizar a pedofilia.”

N2) narradores fofoqueiros
No Zine desorientadores (2017), fanzine virtual elaborado pelas equipes de orientação de público e mediação do MASP, a orientadora de público Luiza B. do Nascimento reconstitui o diálogo entre dois visitantes da exposição “Portinari popular”, em cartaz no museu entre os meses de setembro e novembro de 2016, acerca de “rumores amorosos” na vida do pintor:
— Você sabia que na época Tarsila do Amaral e Portinari eram amantes?
— Mentira!? (se abismou o outro)
— Sim, e eles tinham um código entre eles. Está vendo nas pinturas do Portinari, pés e mãos grandes?
— Sim, estou vendo. (afirmou)
— Era esse o código, a Tarsila pintava pés e mãos grandes para se homenagearem.

N3) narradores frustrados
O quarto DVD do Arquivo para uma obra-acontecimento (2011), organizado pela psicanalista e professora Suely Rolnik em torno da obra de Lygia Clark, traz o depoimento do crítico Paulo Venâncio em torno de sua experiência como “cliente” (o termo é da artista) da experiência Estruturação do Self (1976-88). Então com vinte e poucos anos de idade, Paulo comenta ter frequentado as sessões terapêuticas de Lygia por três ou quatro meses. Eis o seu balanço: “Quanto a uma experiência existencial, foi alguma coisa muito importante na minha formação de jovem, adulto. Foi uma coisa marcante. Agora, quanto ao resultado, digamos, terapêutico, foi desastroso. Quer dizer, não houve melhora do meu estado. Ao contrário, houve uma piora. As sensações começaram a vir com mais intensidade. Então, num determinado momento, houve, de comum acordo, numa conversa, a conclusão de que seria conveniente interromper. E eu acho que houve também o reconhecimento de que ela não tinha mais como controlar, ou amenizar, ou estabilizar o meu quadro. Então, eu acho que terapeuticamente ela tinha um limite.”

N4) narradores altruístas
Em artigo intitulado “A arte contemporânea exposta às rejeições: contribuição a uma sociologia dos valores” (2011), a socióloga Nathalie Heinich registra a iniciativa de uma garotinha diante da exposição de arte que acabara de visitar, dedicada a certa corrente artística nova-iorquina. Já na porta, prestes a ir embora, ela resolveu deixar escrito no livro de assinaturas daquele equipamento cultural de província, na França: “Não compreendo como se paga as pessoas que fazem uma coisa qualquer ou rabiscam um traço milhões e milhões com os quais se poderiam alimentar os etíopes”.

N5) narradores evocativos
Em seu célebre ensaio “Museu Valéry-Proust”, Theodor Adorno identifica no romancista francês, autor de Em busca do tempo perdido, aquilo que chama de “traços de diletantismo” no trato mantido por este com a arte e com os museus que a exibem. Com isso o filósofo quer dizer que as reflexões de Proust a esse respeito, imiscuídas em seu monumental romance com sete volumes, se baseiam não na objetividade das obras (leia-se: seus aspectos formais) e do próprio museu, mas em “subterrâneas associações” que dão origem a narrativas subjetivas análogas a solilóquios. Nestes, as evocações proustianas convertem o espaço do museu e o patrimônio artístico por ele contido em “protoimagens” trágicas da história, ligadas à despedida, à finitude, ao adeus. Exemplo disso é encontrado no volume 2 do romance, intitulado À sombra das raparigas em flor, onde se lê: “É preciso perder toda a esperança de voltar a dormir em casa, uma vez que decidimos penetrar no antro empestado por onde se tem acesso ao mistério, num desses grandes estúdios envidraçados, como a Saint-Lazare, onde eu fui procurar o trem para Balbec, e que estendia acima da cidade desventurada um desses imensos céus crus e cheios de amontoadas ameaças de drama, semelhante a certos céus, de uma modernidade quase parisiense, de Mantegna ou de Veronese, e sob os quais só se podia cumprir algum ato solene e terrível como uma partida em trem de ferro ou a ereção da Cruz.” Essa “transição associativa” toma por objeto a estação de trem pintada por Claude Monet, que hoje se encontra na coleção do Museu d’Orsay – antes no Jeu de Paume. Ligando a estação ao museu, a digressão de Proust enxerga nesses lugares símbolos da morte: a primeira evoca o emblema mortal da viagem sem volta e o segundo, a câmara de artefatos que só não pereceram por estarem ali encerrados. É a “torrente da subjetividade” desse amateur da arte, portanto, que mistura os museus, as obras, as recordações e as projeções em formulações subjetivistas, “com consequência e lógica próprias”.

N6) narradores desaparecidos
O website do MoMA – Museu de Arte Moderna de Nova York disponibiliza farto conjunto de registros fotográficos da exposição “Jackson Pollock”, retrospectiva do artista norte-americano montada – logo na sequência de seu falecimento – no templo da arte moderna, entre dezembro de 1956 e fevereiro de 1957. Mais de uma dezena de fotos em boa resolução mostram como as pinturas, com maiores e menores dimensões, foram dispostas nos ambientes expositivos, cobrindo grande parte das peças exibidas na ocasião. Em média, cada fotografia traz de três a quatro telas, mediante enquadramentos e angulações que favorecem a percepção de como elas ocupavam as superfícies uniformemente iluminadas das salas, rebatendo suas presenças no piso impecavelmente encerado. Os instantâneos também são eficazes em refletir os diferentes núcleos expositivos, demarcados em função das distintas fases pictóricas de Pollock. Um elemento, no entanto, está eloquentemente ausente da totalidade dessas esmeradas fotografias: o público.

N7) narradores edificantes
Na série Obra Revelada (2007), do Itaú Cultural, o professor de história da arte Jorge Coli dedica-se a escutar leituras de obras de arte verbalizadas por públicos não especializados, as quais são filmadas nos locais de exibição das peças (escolhidas pelos entrevistados) e transformadas em programas de vídeo com duração média de dez minutos. Em um deles, o então recepcionista da Pinacoteca do Estado de São Paulo Edilson de Souza – que também é pastor evangélico – comenta o quadro Ventania (1888), de Antônio Parreiras. Depois de ouvir uma interpretação de caráter literário-metafórico-edificante da parte do recepcionista, o professor tenta desviar o rumo da conversa, chamando atenção para as pequenas plantas pictórica e minuciosamente representadas no canto inferior da tela. Ao que Edilson atalha: “Então, o que eu acho interessante, professor, é essa estrada. Se vale fazer uma associação com a nossa vida, ela é uma subida, né? E a gente sabe que depois de uma crise, de um momento de angústia, querendo ou não a gente acaba crescendo, subindo. Você cresce na experiência, na maturidade, você se torna mais forte.”

N8) narradores zombeteiros
Na publicação impressa Edifício Recife (2018), os artistas Barbara Wagner e Benjamin de Burca editam e veiculam excertos de entrevistas com porteiros que trabalham em prédios residenciais na cidade homônima. Enquadrados em uma lei municipal dos anos 1960, os edifícios destacados pela dupla estão obrigados a manter obras artísticas tridimensionais em suas áreas de entrada. Posicionadas nas proximidades das guaritas dos prédios, essas obras são diariamente observadas e, não raro, conservadas pelos porteiros. Oliveira, então empregado no Edifício Esmeralda, se refere nos seguintes termos à escultura de ferro pintado instalada junto à guarita onde cumpre suas jornadas: “Isso aí é uma folha. Não acho que seja uma obra de arte, é muito simples. Quando a arte é bonita eu acho bonita, mas essa é horrível. Não sou do ramo, mas você olha assim e vê a coisa mais feia do mundo. Tanto é que um dia eu pintei e só depois soube que nem podia ter pintado, era pra deixar enferrujando mesmo.”

N9) narradores artistas
No primeiro final de semana da 28ª Bienal de São Paulo, intitulada "Em vivo contato" (2008), um grupo de aproximadamente quarenta pichadores entrou no pavilhão expositivo, escrevendo nas paredes, corrimãos e colunas do segundo piso do edifício, mantido vazio pelos curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen sob a designação de “Planta livre”. A iniciativa dos pichadores contrariava a expectativa de que o espaço vazio fosse ocupado por visitantes que ali se dispusessem a “colar stickers, fazer barcos de papel, ou tocar música”, conforme o vislumbre da dupla de curadores registrado em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo. À acusação destes de que os pichadores pretendiam vandalizar as obras expostas no terceiro piso, a integrante do grupo Caroline Pivetta respondeu, em uma entrevista publicada no mesmo jornal: “A gente não queria estragar as obras, mesmo porque não tinha obra [no segundo piso]. A obra, ali, nós que íamos fazer.”

N10) narradores afetivos
No catálogo da exposição A marquise, o MAM e nós no meio (2018), as páginas reservadas à reprodução das obras expostas trazem, em vizinhança aos registros fotográficos das peças, enunciados interpretativos procedentes dos públicos e agentes envolvidos com o projeto. Nessa seção aparecem excertos de leituras produzidas a partir das obras por frequentadores da marquise, educadores e estagiários do Educativo MAM, estudantes, seguranças do museu, artistas, curadores e, ainda, pela bibliotecária da instituição. Entre esses registros, estão os comentários de Caio Zanutto, ator e bailarino, acerca de Umbigo da minha mãe (da série Dor/Adversus Aestus) (1993), fotografia da artista Vilma Slomp: “A primeira vez que eu vi essa obra, eu achei que era uma pintura de uma caverna, ou de uma coisa saindo de outra coisa. Quando eu cheguei perto, identifiquei que era o umbigo da mãe da artista, e a imagem me ‘pegou’. A minha sogra é de Florânia, na região do Seridó, no sertão do Rio Grande do Norte. Eu tenho uma ligação forte com o centro dela e com as raízes dela no Nordeste. A foto do umbigo me faz pensar em vínculo e me leva a perceber que sou mais próximo da minha sogra do que da minha mãe, que nasceu no interior de São Paulo.”

N11) narradores emuladores
Na plataforma de home office do Sesc, instituição em que trabalhamos, Sergio Seabra, possivelmente atento a anedotas circuladas por mim no Facebook, reportou que, após dar por concluída a “obra” que fizera, Helena, sua filha de 5 anos, registrou em foto o arranjo montado na sala de sua casa: sobre dois pufes, dispôs em fileira um bibelô em forma de pato, um copo plástico da Brahma de ponta-cabeça, um rolo de papel alumínio, uma mangueira plástica azul e uma imagem talhada em madeira; no vão entre os dois pufes, equilibrou um trançado de palha, sobre o qual colocou o carrinho de plástico da Polly. Logo em seguida à foto tirada com o celular da mãe, sua amiga Liz perguntou se, agora, poderia finalmente pegar o carrinho da boneca Polly para brincar. Ao que Helena respondeu assertivamente: “Não! É uma escultura de museu, não pode tocar em nada.”

N12) narradores aquários
Num documentário de número dois do projeto Mixtape: Videobrasil (2014), dirigido pelo curador Paulo Miyada, o roteiro dos diálogos com crianças frequentadoras do Sesc São Carlos se baseia em questões sugeridas por obras exibidas no 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, em sua itinerância pela cidade do Interior paulista. Indagado por Raphaela Melsohn sobre “o que são os artistas”, o menino Nicolas lembra-se de Claude Monet, numa resposta que soa pouco apropriada à interlocutora, preocupada em discutir arte em termos contemporâneos. Daí que à compreensão do garoto sobre desenho e pintura Raphaela acrescente a importância da linguagem do vídeo. O adendo serve de gancho para que obras videográficas sejam intercaladas às falas das crianças, produzindo conexões com as conversas. Por essa lógica de edição, o tema da religião surge no diálogo acompanhado de cenas de Sergio e Simone (2007-2014), videoinstalação na qual a artista Virginia de Medeiros apresenta as faces “travesti” e “pastor evangélico” de uma mesma pessoa, cuja primeira persona tem por missão zelar pela Fonte da Misericórdia, minadouro de Salvador onde se cultuam orixás. “Você reza?”, pergunta a certa altura a interlocutora de Nicolas, que responde: “Às vezes eu esqueço, porque fico com muito sono..., mas normalmente eu rezo... para não ter pesadelo”. Num surpreendente vaso comunicante com as águas de Simone, o garoto narra um de seus pesadelos: “Sonhei que eu estava dentro do jogo do Mario Bros... aí, eu fui dentro de uma cachoeira, e dentro dessa cachoeira tinha outra cachoeira, e atrás tinha outra, outra e outra.”

N13) narradores criativocionistas
O artista Bruno Moreschi, ao ser convidado para participar da 33ª edição da Bienal de São Paulo, buscou construir uma plataforma voltada a recepções e compreensões plurais da mostra, para além de seu discurso oficial. Materializada no website Outra 33 Bienal de São Paulo (2018), tal plataforma traz entre seus diversos conteúdos a seção “Reações do público”, apresentada como um “arquivo alternativo” organizado em colaboração com os mediadores do departamento educativo da instituição. Estes mantinham contato com o artista através de um aplicativo de mensagens, por meio do qual transmitiam a Bruno certas reações dos públicos presenciadas por eles, com notada predileção pelas mais idiossincráticas. É o que se vê na narrativa criada coletivamente por estudantes do quinto ano de uma escola pública de Campinas, durante visita ao núcleo expográfico curado pela também artista Sofia Borges: “Antes tudo era um planeta cheio de luzes, bichos. Todos os bichos eram cegos. As rochas ainda não eram formadas. Tudo era grande e misturado e colorido, com o sol se pondo. Aves estranhas botavam ovos dourados. As sanguessugas foram acabando com a humanidade. Surgiu uma doença chamada spiritofilia, que matou todas as sanguessugas. Só que foi deformando as pessoas. Tinha uma semente gigante, caiu um raio, abriu ela. E o conteúdo era curativo. A semente e os raios também fizeram surgir montanhas. Começaram a surgir outros planetas coloridos e começou a surgir água. Começou a surgir plantas e árvores. Então foi possível fazer um barco e transportar quem estava doente para um lugar seguro onde tinha sementes. E aí eles começaram a fazer objetos de barro.”

N14) narradores piadistas
O Diário do busão: visitas escolares a instituições artísticas (2017), peça documental resultante de nossas incursões etnográficas em visitas educativas com alunos da rede pública de ensino a equipamentos de arte da cidade de São Paulo, registra resposta jocosa de um estudante adolescente a indagação feita por um mediador do Instituto Tomie Ohtake. Este, por sua vez, trazia uma bolsa de pano presa à cintura, de onde sacava sistematicamente pranchas ilustradas relativas à produção da artista nipo-brasileira que dá nome ao instituto. Esse era um expediente corrente na etapa de acolhimento dos grupos de visitantes escolares, voltado a introduzi-los ao repertório visual de Tomie, marcado pela abstração informal. Um desses gestos do mediador, que sempre eram acompanhados de perguntas sobre as impressões dos jovens acerca das peças retratadas nas fotografias, trazia a imagem da obra Sem título (1999-2000), escultura em metal com 23 metros de comprimento e vinte toneladas, situada no Parque Industrial da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração – CBMM, em Araxá (MG). Diante da reprodução de uma forma escultórica monumental, em tira achatada e contorcida, o jovem respondeu com uma só palavra: “Bacon!”

N15) narradores fabulistas
A recepção da arte entendida como ato, como uma forma de agir, aparece em chave alegórica no filme de Alexander Sokurov, Arca Russa (2002), rodado nas galerias do Museu Hermitage, em São Petersburgo. Nesse plano-sequência de uma hora e meia, o misterioso personagem vivido por Sergei Dreiden, um certo Marquês, flana pelas galerias da rica coleção de obras, comentando-as, cantando, dançando e conversando com outros visitantes. Um desses diálogos é travado na galeria italiana do museu, com dois supostos amigos do narrador do filme, cuja presença se dá exclusivamente através de sua voz em off. Apresentando o Marquês, esse “europeu que está viajando pela Rússia”, ao médico Oleg Konstantinovitch e ao ator Lev Mikhailovich, o narrador os deixa diante de uma pintura de Tintoretto. Mas não sem o Marquês, antes disso, se queixar do cheiro de formol emanado de seus interlocutores russos, a quem ele provoca: “É a beleza que lhes interessa ou apenas a sua representação?” Ao que o médico tergiversa: “Não, Sr. Marquês, estamos apenas descansando [no banco desta galeria]”. Mas, notando que ao “europeu” o que interessa é a arte, Oleg diz que vai lhe mostrar “um quadro lindíssimo”: O nascimento de João Batista (1550), do pintor italiano. Com empáfia, o Marquês diz já conhecer o quadro, de sua última visita ao Hermitage, acrescentando inclusive a origem da peça: Coleção Crozat, de Paris. Ele conta à dupla que o quadro fora adquirido por Catarina II, em 1772. Esclarecimento que o médico ironiza: “Mas tudo isso é para especialistas... a nós o que interessa é o detalhe”, afirmação acompanhada do movimento de corpo deste em direção à pintura. Colocando a mão a menos de um palmo da tela, o médico pede que o Marquês “olhe bem para aqui”, para o trecho onde aparecem pintados em primeiro plano, na base da composição, uma galinha e um gato, o qual se posiciona e olha para a ave como quem estivesse prestes a atacá-la. “São figuras simbólicas”, diz Oleg, para logo sentenciar: “A galinha simboliza a avareza, a ganância, e o gato, o cinismo, a crueldade.”

N16) narradores ordenadores de afazeres
No contexto do projeto Mediação como [prática documentária] (2011), desenvolvido por Cayo Honorato no Centro Cultural São Paulo – CCSP, através do Edital de Mediação em Arte, o mediador se propôs entrevistar públicos e funcionários da instituição. Entre os primeiros, Honorato encontrou a chance de abordar a frequentadora Maria Regina, no momento em que ela repousava sobre a obra Memória das Águas (2006), concebida pela artista Amélia Toledo especificamente para o Jardim Suspenso do centro cultural. Na entrevista com a usuária da instalação, Honorato é informado de que Maria Regina trabalha como ascensorista na Beneficência Portuguesa, hospital vizinho ao CCSP, e que assiduamente busca aquele espaço-obra antes do início de seu expediente. Curioso com esse fato, o mediador-entrevistador indaga o motivo dessa assiduidade, ao que Maria Regina esclarece: “Eu fico pensando nas minhas coisas do dia que eu vou fazer, ou então em alguma coisa que eu deixei de fazer”. Ela ainda acrescenta que a escolha daquele local para suas ordenações mentais deve-se às características de “um lugar assim distante para pensar melhor nas coisas... bem sossegado, pra você refletir alguma coisa que você está pensando... pensar em alguma coisa melhor... pôr algumas coisas em dia na cabeça”. Pela transcrição da entrevista, notamos que o usufruto de Memória das Águas está incorporado ao cotidiano da ascensorista, que sempre que consegue chegar um pouco mais cedo ao trabalho recorre aos bancos de pedra desenhados por Amélia Toledo, a fim de ordenar seus pensamentos e afazeres: “Ponho tudo na cabeça e já vou para o serviço”.

N17) narradores republicanos
Transferido, em 1922, do Ministério da Guerra para o recém-criado Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, o retrato a óleo de Dom Pedro II traz marcas alusivas aos rasgos produzidos no rosto da figura por militares de baixa patente, em 15 de novembro de 1889, data da Proclamação da República, fato reportado por Gabriela da Fonseca, em seu artigo “Entre vandalismo e patrimônio” (2020). Vandalismo para os monarquistas, gesto legítimo para os republicanos, os cortes na tela foram preservados até a década de 1970, quando o quadro foi restaurado, com a face do ex-imperador sendo reconstituída – sem que tenha sido feita qualquer menção ao procedimento nos relatórios do laboratório de restauração do museu. No início dos anos 2000, foi formada uma comissão técnica na instituição, que decidiu devolver as marcas dos rasgos originais, retraçando as linhas de corte com tinta acrílica cinza.

N18) narradores politicamente incorretos
Em seu artigo “Da rejeição à arte contemporânea para a guerra cultural", a socióloga Nathalie Heinich reúne, sistematiza e comenta uma série de “casos”, “incidentes” e “anedotas” recolhidos por ela nos contextos francês e norte-americano, para efeito de análise comparativa acerca de controvérsias envolvendo atos de repúdio de públicos não especializados à arte contemporânea, em ambos os países. Ali, a autora joga luz, entre vários outros, em um “caso” ocorrido na Califórnia, na cidade de Concord, que teve a escultura pública Spirit Poles (1989), de Gary Rieveschl, como deflagradora de uma contenda a respeito da pertinência de seu financiamento e instalação em local público. Formada por duas longas séries paralelas de postes de alumínio pontiagudos, posicionados diagonalmente em graus irregulares, a obra é comentada nos seguintes termos por um habitante da cidade: “Ela mostra que os internos assumiram o manicômio!”, dando a entender que os assuntos de interesse geral da comunidade e urbanidade de Concord estavam entregues a pessoas com doenças mentais.

N19) narradores parodistas
Vendo sua sensibilidade religiosa afrontada, os ativistas do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira – IPCO armaram uma incansável campanha de repúdio à 31ª Bienal de São Paulo (2014), edição que teve por título “Como (...) coisas que não existem”, cujas reticências deveriam ser mentalmente preenchidas pelos públicos da mostra. Contrariado com trabalhos artísticos que incorporavam e tensionavam ícones religiosos, práticas reprodutivas, relações de gênero, orientações sexuais e tradições sociais, o IPCO realizou extensa cobertura combativa do evento, do início ao fim do período da exposição, divulgando todas as suas ações de protesto no website do Instituto. Em postagem de 02/12/2014, cinco dias antes do encerramento da exposição, o colunista Daniel Martins (2014) cravou aquele que, para ele, deveria ser o verdadeiro título da 31ª Bienal: “Como zombar da fé com uma arte inexistente.”

N20) narradores licenciosos
Presente dos Deuses (2000) é um documentário voltado a apresentar o que pensam os guardas patrimoniais que trabalham no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, sobre a arte exibida em suas galerias. Perguntado sobre suas ideias acerca do que seja a arte e da influência que esta exerce em sua vida, Paulo se reporta premonitoriamente a Márcia X (1959-2005), artista precocemente falecida, afirmando que “a gente tem que lembrar de sua arte popular, da brincadeira muito legal que ela faz entre o erótico e o religioso”, sempre com “muita fantasia”. Este é o mote a partir do qual o vigilante narra algumas reações do público, testemunhadas por ele, às exposições da artista realizadas no Paço Imperial. Em seu relato, Paulo se refere especificamente a Reino animal (2000), instalação na qual a artista dispõe, no piso da sala expositiva, uma série de bonecas nuas sobre peças de pelúcia que, acionadas por dispositivo elétrico, se movimentam e roçam as partes íntimas das personagens femininas. Ele diz que a primeira impressão das pessoas que entravam no espaço era de que se tratava de “uma coisa infantil”, mas que, à medida que circulavam e atentavam para as libidinosas sugestões produzidas pelo conjunto, sentiam-se sexualmente provocadas, a ponto de soltarem “gritinhos e risinhos frenéticos”. Certa vez, por ocasião da mostra “O Brasil Redescoberto” (1999), inspirado por aquarelas de Jean-Baptiste Debret ilustrativas de guardas que, no Brasil Império, vestiam calças apertadas e sapatilhas jeitosas, Paulo diz ter pensado em consultar a artista, propondo aos seus colegas: “Que tal a gente convidar a Márcia X para fazer o design do novo uniforme dos guardas do Paço? Ela podia desenhar não só a roupa, mas também o cassetete.”

N21) narradores imagéticos
Em Postais mediativos (2017), série com quinze cartões postais impressos em offset, resultante do nosso trabalho de documentação gráfica de uma jornada de mediação cultural realizada pelo MALBA – Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires, em março de 2017, consta o registro em desenho de uma participante do evento que interage com determinada obra da exposição “Verboamérica” (2016-2018). Trata-se de Hongo nuclear (negro) (2004), de autoria do artista argentino León Ferrari. Suspenso a partir do teto, o “cogumelo atômico” deixava um estreito vão livre abaixo de si, no chão, onde a pessoa em questão se deitou para produzir uma cena fotográfica protagonizada por ela em relação ao objeto que alude à explosão nuclear. Sua opção foi por posicionar-se de tal modo que a explosão parecesse provir da região de sua cabeça.

N22) narradores esteticistas
Em seu projeto Mediação como [prática documentária], desenvolvido ao longo de 2011 no Centro Cultural São Paulo, o mediador Cayo Honorato entrevistou frequentadores do local, a fim de levantar, entre outros, “relatos sobre suas relações com a arte”. Na transcrição da entrevista com um rapaz de nome Silvio, assíduo praticante de xadrez nas mesas situadas ao ar livre, o mediador registra não as técnicas enxadristas do jogador, mas sim os seus procedimentos de criação e construção artesanal de tabuleiros e peças dessa modalidade esportiva. Ao indagar Silvio sobre a aparência “diferente” do acabamento do jogo por ele manipulado, o jogador-construtor detalha a procedência e as características dos materiais usados por ele na confecção: a madeira do tabuleiro havia sido retirada de um antigo guarda-roupa, já a das peças aproveitada de estruturas de banners em desuso, enquanto as cores da pintura derivavam da mistura de tintas encontradas entre seus pertences e outros achados, inclusive em caçambas de entulho. As formas das peças contavam com matrizes desenhadas de próprio punho por Silvio, num caderno: rainha, rei e peão eram as que mais lhe davam trabalho, tanto na estilização gráfica quanto no entalhe da madeira, para o qual ele utilizava “só uma serra e uma faca”. Após digressões sobre temas afins, o entrevistador solicita que eles retornem ao primeiro ponto da conversa, do kit de xadrez: “O que você costuma valorizar em cada peça que você faz?” Sem hesitar, Silvio responde: “Ah, a estética, a harmonia dela.”

N23) narradores compadecidos
Hospedado na plataforma digital SoundCloud, Histórias da Infância: Áudios (2016) corresponde a uma proposição desenvolvida pelos então mediadores do MASP Lucas Oliveira e Eliana Baroni junto a alunos do Ensino Fundamental I de duas escolas da cidade de São Paulo, uma pública e outra privada. A proposta teve por objetivo gerar versões comentadas pelas crianças, em áudio, de determinadas obras presentes nas mostras “Histórias da Infância” e “Acervo em transformação”, em cartaz no museu naquele momento. O grupo de estudantes que narra a pintura Rosa e azul – As meninas Cahen d’Anvers (1881), de Pierre-Auguste Renoir, demonstra comiseração pelas meninas retratadas pelo pintor, em virtude das condições que puderam depreender da cena. Conjecturando que elas só estavam ali, “posando numa sala chique”, em virtude do pedido de seus pais, que por sua vez atendiam a uma solicitação de Renoir, os pequenos fruidores-narradores apontam uma série de incômodos que possivelmente acometiam as meninas do quadro, na ocasião em que a obra foi realizada, a começar pelo traje delas: “Essa roupa deve pinicar o corpo... elas devem estar desconfortáveis.” À roupa torturante se somavam, segundo eles, o penteado e a maquiagem que enquadravam as garotas num modelo rigoroso de beleza. Encerradas nessas “armaduras” elas ainda precisavam “fazer pose para o pintor pintá-las”, e por longo tempo: “Ficaram tanto tempo paradas, na mesma posição, que se cansaram.” A aflição delas, de acordo com os infantes comentadores, é especialmente visível na expressão facial da menina mais nova, a de rosa, que “até ficou com os olhos brilhando de lágrimas”. A garota vestida de azul, “percebendo que sua irmã estava agoniada”, teria pedido ao pintor autorização para acalmá-la, “dando sua mão para ela, como forma de carinho, para que se sentisse melhor”.

N24) narradores desviantes
No website Outra 33 Bienal de São Paulo (2018-), interface principal do projeto desenvolvido pelo artista Bruno Moreschi para a 33ª Bienal de São Paulo (2018), há entre as quinze seções disponíveis na página de abertura uma intitulada “Os extintores de incêndio”. Ao clicar no link correspondente, o visitante da plataforma é informado: “Em novembro [de 2018], os alunos da Escola Estadual Octacílio de Carvalho Lopes (São Paulo) visitaram a 33ª Bienal com a professora Ingrid Duran. Na visita, os alunos Gabriel Bezerra Duarte, Igor Machado, Rafael Magalhães Santos e Henrique da Costa Santos decidiram convidar a turma a se relacionar com a Bienal não a partir de suas obras legitimadas, mas a partir dos extintores espalhados no prédio da exposição.” Na sequência do informe estão arroladas nove fotografias realizadas pelo grupo, provavelmente com os aparelhos celulares dos próprios estudantes, nas quais estes aparecem junto a cilindros vermelhos anti-incêndio de diferentes tamanhos, situados em diversos pontos do pavilhão, fazendo sinais com as mãos e olhando descontraidamente para a câmera. Entremeando as fotografias, constam players de áudio nos quais pode-se escutar comentários gravados por dois alunos da turma a respeito daquele desviante roteiro de visitação: “Podia parecer que era somente por zoeira, ou algo parecido, mas na real era tipo fazendo uma crítica... não criticando, mas demonstrando que a arte não é somente aquelas coisas que você acha que é meio diferente da realidade”; “As pessoas olham um quadro que não tem nada a ver com nada, ‘ó, isso é arte’, uma dança que você nunca viu na vida, ‘isso é arte’”; “A arte não é somente o diferente, tá ligado? Não é somente o que você não conhece, mas tipo a arte existe basicamente em tudo”; “Tudo pode ser arte”; “Ao mesmo tempo, foi meio que uma brincadeira que a gente fez, porque a gente estava no espaço da Bienal, vendo todas aquelas artes, umas artes que a gente nem estava entendendo”; “A gente falou: então tá bom, vamos fazer a nossa arte, que era tirar as fotos com os extintores.”

N25) narradores deturpadores
No romance Solução de dois Estados, o escritor Michel Laub (2020) adota como mote e estratégia narrativa o empreendimento de uma cineasta alemã que monta um documentário sobre a violência no Brasil. Na condição de entrevistados principais, os irmãos Alexandre Nunes Tommazzi e Raquel Tommazzi conduzem a narrativa do filme. Ele é dono de uma rede de academias, religioso e defensor dos valores da família. Ela, artista performática de cento e trinta quilos cuja visceralidade do trabalho provém de circunstâncias de vida que a levaram a detestar o próprio corpo. Ambos se odeiam. A versão que Alexandre conta da vida da irmã é mais ou menos esta: "Princesa" que, ao terminar o colégio, foi agraciada com um semestre na Europa para estudar inglês, seguido de nova temporada para fazer “escolinha preparatória para a escolinha de artes”, com tudo pago pelo pai prestes a falir. Passados os anos cursando a “escolinha” europeia, agora formada, era a hora de “enganar os trouxas com essa conversinha de artista”. A base dessa “enganação”, por meio da qual “ela inventa toda uma história que culpa os outros pelo que é culpa só dela”, seriam as suas “doze arrobas”. Valendo-se desse álibi, ela teria criado um mercado para a sua arte performática. Expondo-se como “um pedaço de carne” em museus, galerias e centros culturais, haveria se especializado em “apontar o dedo”, acusando a tudo e a todos por sua desgraça. Assim, a “artista independente” Raquel Tommazzi lograria obter as benesses de instituições financeiras que, através de seus braços culturais, fazem marketing com dinheiro público, concedendo-lhe bolsas de estudo, adquirindo suas obras e performances e convidando-a para falar em “eventinho sobre violência estrutural”.

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O1) obsessivos vítimas
Em nota contra o que identificou como “cristianofobia” praticada pela 31ª Bienal de São Paulo, intitulada “Como (...) coisas que não existem” (2014), o Instituto Plinio Corrêa de Oliveira afirmou que a mostra atacava a fé cristã, “vilipendiando a religião católica”. Entre os sinais da afronta, destacou, além da proposição do coletivo boliviano Mujeres Creando e das obras do artista argentino León Ferrari, a imagem do cartaz daquela edição da Bienal: um desenho do artista indiano Prabhakar Pachpute, que apresenta forma similar à da Torre de Babel, provida de oito pernas humanas. Ao aludir à torre, este “símbolo da soberba do homem”, a peça de divulgação da mostra estaria homenageando, segundo o Instituto, um mito que “desafia a Deus por tentar construir um monumento que chegue até o céu”.

O2) obsessivos agitadores
A atenção ao modelo de visitas escolares a museus de arte e congêneres corresponde ao fulcro do Diário do busão: visitas escolares a instituições artísticas (2015-2017), experimento desenvolvido como parte de nossa pesquisa de mestrado. Resultando em um material gráfico que combina desenhos e relatos textuais, o Diário lança mão de procedimento documentário, lidando em termos etnográficos com um formato sistematicamente utilizado pelas instituições de arte para estimular e intermediar o acesso aos bens artístico-culturais: as visitas mediadas com grupos de estudantes. Gerado a partir de nosso acompanhamento presencial de visitas com alunos da rede pública de ensino ao Instituto Tomie Ohtake, ao MASP, à Pinacoteca, ao Museu da Imagem e do Som e à Bienal de São Paulo – incluindo caronas de ida e volta nos ônibus que transportavam os grupos –, o trabalho funciona como um dispositivo de sondagem e tradução dos atos de recepção e das respectivas formas de atuação dos estudantes nesses equipamentos. Com isso, procura conferir linguagem, visibilidade e circulação às suas reações e respostas a uma ação institucional representativa das políticas de democratização cultural. Um dos registros gráficos estampadas no Diário, relativo à presença de estudantes no Instituto Tomie Ohtake, ilustra três “espectadores” diante de pinturas emblemáticas da abstração geométrica. Nota-se, contudo, que a contemplação solicitada pela arte pictórica é rasurada por uma espécie de dança caótica, fruto da impaciência dos escolares diante da proposta trazida pela “visita educativa”: de que apreciassem cada uma das dezenas de pinturas formalmente similares, baseadas na lógica de variações sobre o mesmo tema, nesse caso, mesma forma. Em lugar de “contempladores”, estes foram designados como “agitadores” no relatório produzido pelo mediador, após a visita.

O3) obsessivos consumistas
Os novos museus (1991), influente ensaio de Otília Arantes, teve sua escrita visivelmente influenciada pela visita – algo frustrada – da autora ao museu d’Orsay, inaugurado na cidade de Paris em 1986, na esteira do que ela identifica por “cultura dos museus”. Já no primeiro parágrafo, pode-se ler: “Quem procura uma relação mais íntima com a arte oitocentista, evite o museu d’Orsay!” Contrariada com a “grande animação” reinante no ambiente “tradicionalmente austero e introvertido dos museus”, Arantes não se deixa iludir pelos neófitos, frenéticos e volumosos “visitantes-consumidores”: “A impressão animadora diante de uma pequena multidão de usuários [...] dura pouco – a abolição da distância estética resolve-se num fetiche invertido: a cultura do recolhimento administrada como um descartável.” Polos de atração, os “novos museus” assemelham-se, em sua perspectiva, a “shoppings centers”, fazendo da alta cultura e de seus highlights mananciais simbólicos amplamente disponíveis e apropriáveis, ainda que menos pela chave emancipatória do que pelos vieses da “massificação da experiência” e da “apreensão superficial”. Aí, a relação com a obra de arte se confundiria com a apropriação de um “bem de consumo”, mantendo-se circunscrita a uma absorção “maximamente interessada” – portanto, contrária à atitude estética desinteressada, distanciada e contemplativa.

O4) obsessivos gulosos
No capítulo de Estética relacional (2006 [1998]) dedicado à obra de Felix Gonzalez-Torres, estudo de caso em que Nicolas Bourriaud excepcionalmente transpõe a linha de descrições confortavelmente vagas acerca das proposições relacionais, surge um problema de recepção. Nele, a aposta do autor nas negociações intersubjetivas instauradas por trabalhos supostamente capazes de “levar o espectador a tomar consciência do contexto em que se encontra” defronta-se com o limite da realidade mais comezinha. Tratando das candy pieces do artista de origem cubana – nas quais experiências conjugais e existenciais de Gonzalez-Torres são formalmente traduzidas por pilhas de confeitos envolvidos em papel celofane –, Bourriaud reporta que durante uma exposição ele se deparou com visitantes enchendo os bolsos com as balas. Lamentando esse tipo de comportamento do público, o autor o atribui a uma concepção acumulativa do mundo, estranha à experiência sensível baseada na responsabilidade da partilha.

O5) obsessivos miradores
Em nossa dissertação de mestrado, intitulada Públicos em emergência: modos de usar ofertas institucionais e práticas artísticas, evocamos situação envolvendo uma proposição de Lygia Clark, artista essencial para a compreensão do programa participativo em arte. A propósito de seu ambiente A casa é o corpo: penetração, ovulação, germinação, expulsão (1968), remontado na exposição “Lygia Clark, do Objeto ao Acontecimento: nós somos o molde, a vocês cabe o sopro” (2006), curada por Suely Rolnik, perguntamo-nos: onde alocaríamos, e o que faríamos, com a forma de “participação” de uma pessoa que, ao visitar tal exposição, se absteve de entrar no mencionado ambiente, dedicando-se, em vez disso, a mirar obsessivamente o semblante daqueles que acabavam de sair do interior da obra?

O6) obsessivos aniquiladores
No texto “O efeito Beaubourg”, em sua tradução portuguesa pela Editora Relógio D’Água, o pensador francês Jean Baudrillard conta do assombro que lhe causou a inauguração do Centro Georges Pompidou, na cidade de Paris, nos anos 1970. No que ele chama de “monumento aos jogos de simulação das massas”, estas se veem efusivamente convocadas a tomar parte em eventos de “implosão” e “luto” culturais. Atendendo a esses chamados e precipitando-se para lá, essas massas homéricas, obstinadas e fascinadas manifestam o assustador afã de “ver tudo”, “manipular tudo”, “pilhar tudo”, “devorar tudo”. Sua presença e o peso de seus corpos, intensificados pela movimentação frenética e descoordenada de seus membros, concorrem para uma catástrofe condensada no brado: “Façam vergar o Beaubourg!” Essa adesão superinteressada, típica dos consumidores de quinquilharias, somada a uma curiosidade de feitio bárbaro concorrem para aniquilar, simultaneamente, a cultura e seu templo transformado em “hipermercado da cultura”. Em sua “irrupção destruidora” as massas finalmente acessam o maravilhoso mundo da cultura, ao mesmo tempo que o extinguem.

O7) obsessivos trapaceadores
Em seu livro Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado (2014), a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva relata que quando, em 1995, o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, recebeu uma grande mostra do escultor francês Auguste Rodin (a mesma que esteve em cartaz, na sequência, na Pinacoteca de São Paulo), formavam-se filas intermináveis em sua entrada, as quais se estendiam pelas ruas próximas ao museu, fazendo com que os visitantes precisassem esperar por longas horas. Um tal César, indisposto a aguardar na fila como os demais, não hesitou em dar curso ao seu estratagema, paramentando-se com óculos escuros e bengala. A incorporação da persona do cego lhe conferiu o direito de entrar imediatamente na exposição, sem pegar fila, além de desfrutar do serviço exclusivo de um mediador e de poder tocar nas esculturas.

O8) obsessivos selfiers
No Zine desorientadores (2017), fanzine elaborado pelas equipes de orientação de público e mediação do MASP, aparece estampada uma fotografia que mostra dois policiais militares fardados, em ronda pelo interior do museu, no momento em que topavam com Tempo suspenso de um estado provisório (2011-2015), trabalho em que o artista Marcelo Cidade se apropria do cavalete projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi, em 1968, para a exibição do acervo de pinturas do museu, substituindo o “cristal” por lâmina tripla de vidro blindado. Tal superfície traz as marcas de dois tiros de revolver, resultando em um filtro físico e simbólico que pareceu oportuno aos policiais para uma selfie.

O9) obsessivos afanadores
Em nossos Episódios contrapúblicos (2014-) lê-se uma passagem referente ao furto de parte de uma obra artística, ocorrido em 2008, no Centro Cultural São Paulo, envolvendo uma adolescente. Pelo que dizem, ela já vinha frequentando o CCSP há pelo menos um ano. Era fissurada naquela dança pop coreana coreografada – o K-pop – que meninas e meninos performam diante de grandes superfícies espelhadas no centro cultural, num jogo de exibição fundido com auto-observação. O grupo dessa adolescente usava para sua prática semanal, normalmente às quintas-feiras, uma pele de vidro do CCSP que, por conta do fundo escuro daquela parte do edifício, refletia bem as imagens dos corpos púberes em movimentos calculados. Um dos banheiros do piso Flávio de Carvalho servia-lhes de “camarim”, mas naquele dia estava em manutenção. Aliás, todos os banheiros daquele piso estavam interditados em virtude de um programa de reformas, conforme dizia o informativo colocado na porta de cada um deles. Foi por esse motivo que ela subiu a rampa para usar o banheiro do piso Caio Graco. Já pronta, decidiu dar uma rápida olhada nas exposições em cartaz naquele andar, quando topou com uma série de desenhos narrativos de pequenas dimensões, fixados na parede por frágeis presilhas de escritório. Um lhe chamou especial atenção: havia a figura desenhada de um homem vestido com camisa social de manga curta e, logo abaixo, a expressão “equilibrista”. O pai da garota, soube-se depois, era alcoólatra. A leitura que fizera do desenho naquele instante, conforme anotou em seu blog, articulava a experiência oscilante do pai com a condição de “equilibrista na vida” da figura desenhada. Ela então olhou para os lados e, vendo o entorno vazio de visitantes e livre de seguranças patrimoniais, não teve dúvida: arrancou o desenho da parede, o meteu no bolso e desceu para dançar. Uma câmera de vigilância registrou o seu ato.

O10) obsessivos que se recusam a partir
Em seu romance Ponto ômega (2011), o escritor Don DeLillo narra, em dois capítulos específicos, no primeiro e no último, a experiência de um personagem anônimo no interior da videoinstalação 24 Hour Psyco (1993), de Douglas Gordon, na qual o artista se vale do filme Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, “esticando-o” a fim de que o mesmo totalize vinte e quatro horas de duração – exibindo-o numa sala escura, sem assentos, em tela translúcida posicionada no centro do espaço, de modo que os espectadores possam circular por ela. Contrastando com o entra e sai de visitantes do museu (cujo nome não é mencionado pelo autor), um homem mantém-se imóvel, em seu "ato de ver", por mais de três horas, olhando fixamente para as cenas do filme em câmera lenta: “Era o quinto dia seguido que ele vinha ali e era o penúltimo dia da instalação, que depois seria encerrada e levada para outra cidade ou guardada em um depósito obscuro em algum lugar.”

O11) obsessivos loucos de palestra
Em seu artigo intitulado “Em torno de uma ação de ‘A Moreninha’: algumas questões acerca do debate crítico na década de 1980”, o pesquisador Ivair Reinaldim abre o texto com um roteiro (único documento escrito que restou da ação) estruturado pelos integrantes do coletivo citado no título, pensado para ser colocado em prática durante a palestra do crítico de arte italiano Achille Bonito Oliva, na Galeria Saramenha, no Rio de Janeiro, em 18 de fevereiro de 1987. Nessa data, o grupo de artistas autonomeado A Moreninha engrossou a audiência da palestra ministrada pelo crítico na galeria. Porta-voz da então aclamada “retomada da pintura” e ideólogo da Transvanguarda, o crítico teve sua explanação sabotada por gestos dos artistas – alguns deles disfarçados de garçons. Atuando nos bastidores e distribuídos entre as cadeiras da plateia, os artistas lançavam mão de uma série de artifícios de desdém ao evento. Iniciada a fala de Oliva, A Moreninha acendeu alguns barbantes (“peidos de véia”). Aos cinco minutos, seus membros iniciaram o “levanta e senta”. Concomitantemente, entraram aqueles vestidos de garçons, servindo moedas de chocolate e adicionando torrões de açúcar na água do palestrante, enquanto outros vestiam grandes orelhas de papel. Assim que os garçons gritaram “O doce acabou!”, A Moreninha soltou expressões de lamento, “Oh! Ah!”, quando um deles ligou o rádio e outro cantou uma ópera.

O12) obsessivos fotografadores
O flyer eletrônico de divulgação da palestra “Museologia pós-crítica segundo os Tate Encounters”, ministrada em modalidade virtual pelo mediador e professor Cayo Honorato (Universidade de Brasília), em 28 de setembro de 2020, e promovida pelo Grupo Entre – Educação e arte contemporânea, vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo, traz a foto de uma garota com não mais de 10 anos de idade, de costas. No registro realizado pelo próprio palestrante, um ano atrás, na sala de réplicas do Victoria and Albert Museum, em Londres, vemos a menina manejar a câmera de um celular, direcionando-a para a cópia em tamanho natural de Davi, escultura de Michelangelo datada de 1501-1504. Mais precisamente, ela usa o zoom da câmera para recortar e aproximar o pipi do personagem retratado, podendo observá-lo mais de perto e melhor. O mesmo registro foi usado, após autorização do autor, para a divulgação do curso “Recepção como elo da arte com o mundo”, ministrado por nós no primeiro semestre de 2021, também em modalidade remota, a convite da galeria Aura.

O13) obsessivos enlouquecidos
Em nota de rodapé do seu livro Arte contemporânea: uma introdução (2005), Anne Cauquelin traz um fato indicativo do fenômeno Andy Warhol. Na seção dedicada à ideia de que esse artista produziu a si mesmo “como sua própria obra”, tendo na figura do astro o seu emblema, a autora comenta que os objetos por ele apresentados – a lata de sopa, a garrafa de refrigerante ou ele mesmo – são Warhol. Daí que personalidade, nome, assinatura e obra se confundam, fazendo com que tal agregado fosse “idolatrado pelos adolescentes [norte-americanos]”. O sucesso do astro junto ao público jovem era tamanho que, de acordo com a nota, “em 1965, uma horda enlouquecida de adolescentes invadiu a exposição [do artista] no Institute of Contemporary Art of Philadelphia, [ocasião em que] foi preciso retirar os quadros”.

O14) obsessivos mais interessados no celular
Comentando uma postagem nossa no Facebook, na qual parafraseávamos a "enciclopédia chinesa" evocada por Jorge Luis Borges no ensaio “O idioma analítico de John Wilkins”, o mediador cultural William Toledo de Lima trouxe uma caracterização de público afim à tipologia que temos ensaiado. Nossa versão da enciclopédia joga com a possibilidade de os públicos de arte serem subdivididos em: a) procedentes do turismo, b) excitados, c) geridos, d) crianças, e) fantasmas, f) contrapúblicos, g) jovens que disputam corrida nas galerias expositivas, h) incluídos nesta classificação, i) que se movimentam freneticamente, j) imponderáveis, k) fotografados diante de fachadas de museus, l) et cetera, m) que acabam de vandalizar a obra, n) que de longe parecem formigas no açúcar. William, de sua parte, nos apresentou uma nova categoria, que agora incorporamos à lista: o) mais interessados no celular. A nomenclatura deriva da experiência desse profissional enquanto mediador de exposições de arte. Ele conta que o museu onde trabalhava passou a disponibilizar wi-fi aos visitantes. Foi quando William recebeu um grupo de estudantes do Ciclo Médio, ocasião em que, segundo ele, “havia meia dúzia de jovens interessados nas exposições em cartaz e uns vinte interessados apenas no celular”. Entre os primeiros, uma adolescente pediu ao mediador que lhe falasse a respeito de uma obra específica, sem saber que justamente aquela era uma peça com a qual o mediador tinha pouquíssima familiaridade. Como forma de contornar a situação, William sugeriu que a garota buscasse na internet, naquele mesmo instante, referências sobre a obra. Na sequência, a jovem passou a ler em voz alta para o grupo as informações que encontrara num website especializado, tendo sido repentinamente atravessada pela risada de um colega até então alheio às coisas da exposição, que disse não ver nexo algum “entre aquelas palavras e o objeto que tinham diante de si”, o que acabou gerando toda uma discussão sobre as conexões e disjunções entre as palavras e as obras visuais.

O15) obsessivos melodramáticos
“Histórias da Infância: Áudios” (2016) traz em suas gravações sonoras disponibilizadas no SoundCloud impressões causadas por obras do acervo do MASP nas crianças de duas escolas participantes do projeto homônimo, desenvolvido por mediadores do museu. Uma dessas leituras interpretativas, reproduzida na faixa de número seis da playlist, tem na pintura A Virgem com o Menino de pé abraçando a Mãe (1480-1490), de Giovanni Bellini, um objeto provocador de espanto. A cena do Menino em pé no parapeito de uma varanda, envolvendo o pescoço da Mãe com seus braços, leva uma garota a proferir em nome do grupo: “A gente achou que ela [a Madona] está meio desconfiada: ‘Será que esse Menino vai me enforcar?’”. Isso porque, ainda segundo a porta-voz, o pequeno Jesus parece agarrar com excessiva força a parte das cordas vocais de Maria, gesto registrado nos seguintes termos: “Pegando por aqui, assim, e ÉRRHHH...”.

O16) obsessivos homofóbicos
Na ocasião em que reencenávamos – no contexto da Escola de Arte Útil (2018-), proposição da artista Tania Bruguera integrante da exposição “Somos muit+s: experimentos sobre coletividade”, montada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2019 – uma visita com estudantes à mesma instituição, registrada no Diário do busão: visitas escolares a instituições artísticas (2017), o colega Tiago Santinho relatou uma conturbada visita educativa com grupo de adolescentes do Ensino Médio, no Paço das Artes, em 2010, quando ele, então mediador na instituição, teve de lidar com situações violentas e embaraçosas. Segundo Santinho, já no acolhimento à turma, um garoto deu um tapa no rosto da colega, dizendo: “Você não vai falar dessas coisas comigo, vai falar com essa bicha aí”, referindo-se ao mediador. A homofobia deu o tom da visita, recrudescendo quando o grupo se deparou com uma instalação do artista Nino Cais, que trazia diferentes objetos resultantes de colagens oriundas do universo das antigas revistas de moda. Irritados com o que trazia a instalação, alguns alunos começaram a tocar nas peças, em gesto provocativo. Com a insistência do mediador para que não mexessem nos objetos, um dos estudantes ergueu a escultura que unia as pernas de um manequim e uma mala de viagem, atirando-a no chão. Na sequência, encarou o mediador de perto, desafiando-o: “E aí, o que vai fazer?”, enquanto outros dois cercavam-no. A professora entrou em desespero, sem saber o que fazer para apaziguar a situação, suplicando que os garotos não batessem no mediador. Sem que os vigilantes patrimoniais viessem em seu auxilio, Santinho deu um jeito de encerrar a visita, mas não sem receber a ameaça de que o trio voltaria sem a professora, para pegá-lo. A partir do momento em que nos foi relatado pelo mediador, o ocorrido passou a integrar nossos Episódios contrapúblicos (2014-).

O17) obsessivos devoradores
Montada no galpão do Liceu de Artes e Ofícios, a exposição "Paralela" (2008) ocorreu em simultâneo à Bienal de São Paulo, em sua 28ª edição. Aproveitando a ocasião e a presença de públicos de procedência tanto nacional como estrangeira na Capital paulista, a exposição promovia trabalhos de artistas ausentes da lista daquela Bienal – porém inseridos no circuito das galerias paulistanas, que inclusive financiaram a exibição no Liceu. Visitando a "Paralela" num final de semana, sentimo-nos especialmente atraídos pela obra da artista Debora Bolsoni intitulada Pipocas (2008), constituída por centenas de pequeninas peças de porcelana. Espalhados pelo chão de modo aleatório, dando a impressão de terem entornado de uma panela, os minúsculos objetos tinham a mesma forma e escala do petisco que dá nome ao trabalho. Levados pelo instintivo gesto de passar a mão na cumbuca, recolhendo punhados de pipoca para devorá-los, abaixamos de maneira irrefletida e catamos um par de grãos estourados – em versão simulada – metendo-os não na boca, mas no bolso da calça. Anos depois, em uma festa de artistas num apartamento na Vila Romana, Zona Oeste da cidade, Debora nos contaria de sua indignação, à época, com a “devoração” de sua obra pelo público: embora o consumo não estivesse no programa de Pipocas, diversos visitantes da exposição, além de nós, arrogaram-se o direito de embolsar as pecinhas de porcelana, praticamente limpando o chão do galpão expositivo do Liceu e incorporando aqueles resquícios às suas próprias coleções ou caixas de guardados.

O18) obsessivos autistas
Em Nuvem de desejos atravessados (2016), publicação impressa do Núcleo de Ação Cultural e Educativa do MAES – Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo, a arte-educadora Fernanda Antônia usa a seção que lhe coube no material para “trazer questões sobre recepção”. Ao lê-la, notamos que a recepção adquire duplo sentido em sua abordagem, uma vez que Antônia entrevista recepcionistas do museu a respeito das formas de recepção praticadas pelos públicos diante das exposições em cartaz. A transcrição de sua entrevista com a profissional Fernanda Rangel, na altura do tópico “Qual foi sua experiência mais marcante no museu?”, coloca-nos a par das atitudes de um “aluno-visitante autista”, caracterizado como “menino autista cabeludo”, que durante a visita de sua turma da escola ao museu “não parava quieto”. Foi nessa circunstância “que o garoto puxou a lona, o tecido da obra do artista Thiago Arruda”, produzindo para Rangel, na condição de recepcionista do museu, a sua experiência mais marcante ali. Segundo ela, “as professoras tinham que segurar o garoto”. Mais do que isso, “elas tinham vontade de bater nele, mas não batiam, só seguravam”. Tendo presenciado pela primeira vez o que chama de “um autista atacado”, a recepcionista se declarou perplexa com a situação toda, sem ter a mínima ideia de como proceder.

O19) obsessivos sugestionados
No artigo “Da rejeição à arte contemporânea para a guerra cultural", a socióloga Nathalie Heinich reúne, entre tantos outros, os argumentos apresentados por uma parte dos habitantes de Nova York para rejeitar a presença de Tilted Arc (1981), escultura monumental de Richard Serra, na Federal Plaza, em Manhattan. Na campanha pela retirada da obra da praça, que se estendeu por anos, efetivando-se somente em 1989, um administrador do Departamento de Saúde da cidade apresentou uma série de motivos para a remoção dessa “barreira que se passa por arte”. Um deles chama atenção pelo paralelo com a atividade do profissional de saúde: “Ela forma uma cicatriz na praça.”

O20) obsessivos eufóricos
Em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo, publicada em 16 de junho de 1995, Marcelo Coelho dedica parte de suas linhas ao comportamento do público da exposição “Rodin” (1995), em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ao visitar a mostra, o colunista ocupara-se não somente de conferir as obras em exibição, mas também de atentar para as condutas de seus visitantes, pasmando-se com “um sentimento que não é habitual em museus”. Notando se tratar de atitudes deslocadas do costume fruitivo cultivado nas galerias museológicas, Coelho ressalta que “não se tratava daquela admiração respeitosa, daquela espécie de simples ‘verificação’ da existência de uma obra de arte, nem mesmo do espanto ou do maravilhamento que são de praxe nessas ocasiões”. Para sua surpresa, nem as figuras mais graves do repertório escultórico de Rodin eram capazes de dobrar a euforia do público, que até mesmo diante d’O Pensador (1904) se deixava tomar pela animação, o que despertava em nosso observador “uma estranha vontade de rir”. Contrariando a contemplação e a circunspecção solicitadas por essa e outras obras, “as pessoas se agitavam como se fossem crianças de escola”.

O21) obsessivos decepcionados
Em “Ingleses decepcionados”, um dos mais de cem pequenos contos reunidos em O imitador de vozes (2009), livro do escritor Thomas Bernhard, o autor narra a viagem de três turistas ingleses à região europeia do Tirol, em sua porção leste. Ali, o trio fora conduzido por um guia especializado na subida aos Três Picos de Lavaredo, situados na Itália, onde, ao chegarem no cume do mais alto, se sentiram enganados: após o considerável dispêndio de dinheiro, tempo e energia, viram-se tão frustrados “com o espetáculo oferecido pela natureza” que, ali mesmo, “surraram até a morte o tal guia”, que era pai de família e tinha três filhos. Atônitos com a própria reação brutal e assassina, os integrantes do trio inglês se suicidaram, um após o outro, atirando-se no abismo. O fato logo virou notícia na imprensa de Birmingham, cidade do trio, que perdeu “seu mais destacado editor e proprietário de jornal, seu mais extraordinário diretor de banco e seu melhor agente funerário”.

O22) obsessivos miméticos
Produzido pelos orientadores de público e mediadores do MASP, o Zine desorientadores (2017) traz entre seus registros fotográficos cenas em que fruidores de obras da coleção do museu, valendo-se das câmeras de seus aparelhos celulares, geram instantâneos de mimetismos que se processam entre os retratados: os das pinturas e os das fotos. Num deles, o quadro Cristo abençoador (1834), de Jean-Auguste Dominique Ingres, induz o visitante a posicionar-se ao lado da moldura do quadro, erguendo os antebraços e abrindo as mãos em gesto de consagração. No outro, o Retrato de Suzanne Bloch (1904), de Pablo Picasso, atrai a orientadora de público Luiza B. do Nascimento para junto da tela, a ponto de quase encostar a lateral de seu rosto na superfície da pintura. Ambas as figuras aparecem com a expressão séria, a boca fechada e o cenho semifranzido, mirando o observador (do quadro e da foto) com olhar de poucos amigos. No caso de Luiza e Suzanne a identificação é tanta que, na legenda da fotografia, consta que elas são "irmãs gêmeas".

O23) obsessivos tementes
Edifício Recife (2018), publicação organizada pela dupla de artistas Barbara Wagner e Benjamin de Burca, traz estampados em suas laudas sessenta e seis registros fotográficos de esculturas acompanhados por relatos de pessoas que convivem diariamente com as peças. Tratam-se de porteiros que trabalham em prédios na cidade de Recife que, por lei, estão obrigados a manter obras artísticas tridimensionais em sua área de entrada. Esse é o caso do edifício Anaié Village, onde Claurindo bate ponto. Ali, uma escultura vertical em pedra representa um amalgama de corpos humanos que, além de juntar uma porção de troncos e braços, compreende quatro cabeças. O religioso porteiro comenta que, apesar de sempre limpar a área onde a escultura encontra-se instalada, evita de todas as maneiras se aproximar dela. Para ele, mais do que estranha, aquela imagem formada por várias cabeças, “umas saindo por cima das outras”, é motivo de um tipo de censura similar ao que Javé, seu Deus, dispensa ao paganismo idólatra, no Antigo Testamento. Claurindo se apressa em dizer que, quando não está trabalhando no prédio, está rezando na igreja: “Lá, a gente tem somente um Deus para adorar.”

O24) obsessivos militaristas
A mediadora Rosiane Silva faz uso da linguagem das histórias em quadrinhos para narrar uma situação vivida por ela junto a um casal de visitantes do Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo – MAES, em Vitória. A HQ encontra-se estampada em Nuvem de desejos atravessados (2016), publicação editada pelo Núcleo de Ação Cultural e Educativa do MAES, na qual têm espaço algumas inquietações e vislumbres dos mediadores da instituição em suas experiências com arte, educação, públicos e dinâmicas museais. Na sequência de seis quadros, a referida mediadora registra a passagem do casal pelas dependências do museu, desde a chegada até o momento em que os parceiros vão embora. Vê-se, logo de cara, que marido e mulher não estão de acordo quanto ao propósito da visita: enquanto ela anuncia à recepcionista “quero ver a exposição”, seu companheiro range os dentes: “O quê que eu estou fazendo aqui?! Aff.” No segundo quadro, ficamos sabendo que ele é norte-americano e que, ao contrário da esposa interessada nos trabalhos expostos, está enfezado: “Que merda é essa? Não tem pintura! Para que isso?” Ele então se dirige aos mediadores que estão a postos no ambiente expositivo, regurgitando abobrinhas, palavrões e até ameaças. No penúltimo quadrante, quando a cônjuge volta a se aproximar dele, chamando-o para saírem, flagra-se o rapaz intimidando a mediadora: “Diga para os seus colegas que eu sou soldado do exército americano!” O quadro final apresenta a medidora sozinha, furiosa, com os cabelos em pé e soltando fumaça pelas narinas.

O25) obsessivos examinadores
Na vasta série produzida ao longo de quatro décadas por Alécio de Andrade, chamada O Louvre e seus visitantes (1964-2003), o fotógrafo coleciona registros de situações performadas por frequentadores do museu francês em suas incursões nas salas expositivas. Em uma foto de 1993, realizada na ala dedicada à Renascença Italiana, vemos um homem diante da colossal pintura As Bodas de Caná (1562-1563), de Veronese, que mede em torno de 6,5 x 10 metros. O quadro alude ao episódio bíblico em que Jesus e seus discípulos participam de uma festa de casamento, com o primeiro transformando água em vinho quando a bebida se esgota. Considerado o milagre inaugural de Jesus, o feito inspira no pintor italiano a enorme composição em perspectiva, representando quase cem personagens dispostos num pátio equipado com extensa mesa em “U”, ladeada por balaústres e grandes colunas, com o milagroso ao centro. Clicado por Alécio, o observador do quadro denota postura singular: em pé, com as mãos para trás, ele se apoia na perna direita, mantendo o calcanhar do pé esquerdo elevado. A ponta desse pé o projeta em direção ao quadro, a ponto de seu peito praticamente apoiar na moldura oblíqua e larga da obra. Sua cabeça desponta ainda mais em direção à superfície da pintura, com seu rosto grudando-se nela. Essa proximidade máxima é potencializada pelos óculos usados pelo examinador, que vinha fazendo esse mesmo movimento por toda a extensão inferior do quadro, escaneando-o com seus olhos. O ascético espectador, conforme explicou ao guarda de sala, nutria o plano improvável de calcular a quantidade de pinceladas congregadas naquela pintura de 65 m².

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A1) arbitrários repressores
“Pelourinho diante da Bienal” é o título de um texto assinado por Jacinto Flecha, autor paraguaio radicado no Brasil, publicado no site do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira em 08/10/2014, por ocasião da campanha de abominação da organização frente a obras como Espacio para abortar (2014), do coletivo boliviano Mujeres Creando, apresentada na 31ª Bienal de São Paulo. Clamando por punição física a artistas “de bienal”, responsáveis pelo que chama de “tranqueira disforme, ilógica, malcheirosa, criminosa e deturpadora”, Jacinto traz sua experiência de infância como régua para as avaliações e injunções que comunica. Assim, inicia seu texto fazendo um paralelo entre a atividade artística e a expressão “fazer arte”, destacando o sentido de “arteiro”, “traquinas” e “travesso” da segunda. Eram frequentes, como ele conta, as acusações que sofria dos adultos, quando criança, de que estava “fazendo arte” e cuja consequência vinha “sob a forma de chineladas”. Um desses momentos não lhe sai da memória: “Peguei um pedaço de tábua de meio metro, reuni uma centena de pregos de vários tamanhos, idades e formas[;] arranquei um tijolo que estava meio solto na parede de uma edícula, e com a ajuda de um martelo consegui firmar o tijolo sobre a tábua com [o acréscimo de] um fio de cobre. Os pregos restantes foram martelados na tábua, ficando alguns na vertical ou inclinados, outros entortaram, poucos concordaram em mergulhar na madeira. Depois, apliquei massa de cimento e areia sobre o tijolo.” Foi aí que apareceu “uma pessoa muito querida, mas muito afeita ao uso punitivo do chinelo”. Tendo sido “pego em flagrante”, o pequeno Jacinto não pôde sequer explicar o seu “empreendimento artístico”. Hoje, ele considera correto o castigo de então: “Reconheço que havia alguma razão para meu órgão recebedor de chineladas ser torturado naquela ocasião, afinal, eu utilizara uma tábua e muitos pregos, e ainda deixara um buraco na parede.” É com base nisso que ele insta o leitor: “Você não acha que um pelourinho colocado bem diante da Bienal seria um bom estímulo para a produção de obras realmente artísticas, e para a exclusão dessa multiplicidade de achincalhes à verdadeira arte? Faz muita falta um pelourinho...”.

A2) arbitrários desavisados
Em Não há tempo para o amor, Charlie Brown (1973), desenho animado da turma do Minduim, este e Patty Pimentinha recebem a notícia de que terão uma excursão ao museu de arte da cidade. Com Snoopy presente no dia da visita, os personagens se encontram na fila do museu, após os traslados de ônibus, quando por distração acabam se desgarrando dos grupos de suas escolas. Uma vez que o museu se situa imediatamente ao lado de um supermercado, Charlie Brown, sua irmã Sally, Patty Pimentinha e Marcie são induzidos ao erro pelo cão Beagle, que se adianta à turma e entra no estabelecimento comercial, arrastando-os consigo. Consultando o folheto da loja, Pimentinha dispara: “Isso é horrível, parece que o museu está vendendo parte da sua coleção para ficar aberto.” Ao que Minduim complementa: “Devem estar desesperados, estão vendendo tudo tão baratinho.” No museu propriamente dito encontram-se os personagens Linus e Lucy van Pelt, que logo adverte o irmão, em referência à visita: “Tente não se divertir, isso tem que ser educacional.”

A3) arbitrários resistentes
No décimo sétimo DVD do Arquivo para uma obra-acontecimento (2011), organizado pela psicanalista e professora Suely Rolnik em torno da obra de Lygia Clark, o artista David Medalla conta de sua amizade e longa convivência com Lygia, em Paris, nos anos 1960-70. Faziam parte do círculo de amizade o artista Sérgio Camargo e sua esposa, a socióloga Aspásia Camargo. David relata que, certo dia, Lygia conseguiu finalmente convencer Sérgio, escultor no sentido estrito do termo, e Aspásia a vestirem os macacões de O eu e o tu (1967), apesar das evasivas do primeiro: “Não, eu não posso participar...”. Ao que a artista insistiu: “Não, você vai ver, é muito fácil!” Devidamente trajado, o casal Sérgio e Aspásia começou a se tocar, enquanto David e Lygia seguravam o riso. Inspecionando a experiência e sondando seus efeitos na dupla, a artista perguntou: “O que foi que você tocou nela, Sérgio?” O qual respondeu, contrariado: “Não era nada, era apenas um saquinho de nada.”

A4) arbitrários equivocados
O Arquivo para uma obra-acontecimento (2011), organizado pela psicanalista e professora Suely Rolnik em torno da obra de Lygia Clark, traz em seu sexto DVD o depoimento de Ivanilda Santos Leme, prostituta e presidente da ONG Fio da Alma. Esta conta que, entre 1976 e 78, Lygia frequentava o círculo de prostitutas que faziam ponto no Beco da Fome, em Copacabana. Encontrando-as num bar do beco, a artista não só conversava e desenhava retratos das “meninas”, como também as chamava para participar das sessões terapêuticas de Estruturação do Self (1976-88), em um cômodo de seu apartamento reservado para esse fim. Desde o início, Ivanilda “cismou” com a artista, que para ela tinha “cara de madame” e uma “fala não muito brasileira”, parecendo ser “cagueta”, talvez “mulher dos caras da ditadura, da polícia”. Desconfiada, Ivanilda não conseguia, e nem desejava, entender porque Lygia queria levar as “meninas” para o apartamento. Como liderança, dizia para suas colegas que aquela que fosse para o apartamento com a artista seria impedida de trabalhar no ponto. Tinha certeza de que, uma vez no apartamento, elas acabariam dando informações para as supostas delações de Lygia. Ivanilda era usuária de drogas e, por isso, ficou “grilada” com a forma como o sobrenome da artista soava aos seus ouvidos: Lygia “Crack”. Era um sobrenome de “tóxico”, sendo que nem havia crack no Rio de Janeiro naquela época: “Como é que essa mulher vem com essa história de crack? Essa aí deve ser uma mafiosa horrível.”

A5) arbitrários mal-entendedores
Em sua conferência no “World Biennial Forum” (2015), o mediador cultural Cayo Honorato comentou passagens de textos do crítico de arte belga Léon Degand, de meados do século XX, acerca do papel do público no fenômeno artístico – deixando pistas que desdobramos em Públicos em emergência: modos de usar ofertas institucionais e práticas artísticas (2017). Degand foi o primeiro diretor artístico do Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM-SP, além de consultor de Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado na constituição da coleção de arte do casal. Em “A importância do público” (1948), ele indaga a desatenção historicamente dispensada à audiência artística. Protestando, diz que “a obra não é apenas aquilo que o artista pretendeu que ela fosse”, mas também “tudo aquilo que cada um de nós, em obediência aos modismos espirituais da época e do estado de humor pessoal, diminui, acrescenta ou modifica”. Em “Estarão divorciados a arte e o público?” (s.d.), porém, o crítico mostra suas garras, afirmando que essas esferas sempre estiveram apartadas, já que em nenhuma época o público compreendeu as “razões estéticas da arte”. Na modernidade artística isso se aprofunda: “Graças à revolução artística que se iniciou durante as primeiras décadas do século XIX [...], percebeu-se, enfim, que o público só se interessava pelas artes plásticas em virtude de um mal-entendido – o de confundir artes plásticas com a encenografia – e que a parte especificamente plástica dessas artes lhe escapava geralmente.” Mas Degand, como missionário da estética moderna, tinha a solução: “Existe um meio apenas para acabar com esse mal-entendido: ensinar ao público, desde a mais tenra infância, na escola, nas academias de Belas Artes, em toda parte, que em toda obra de arte pertencente às artes plásticas (pintura, gravura, escultura etc.) o importante, em primeiro lugar, é a plástica.” O sentido da educação tinha, para o crítico, relação com um modo de forjar e impor o sujeito moderno, convencendo o público da importância da arte enquanto tal. A crença que animava Degand levou-o a escrever uma carta a Ciccillo, na qual instigava a verve liberal e empreendedora deste: “O público não entende nada de arte moderna. Ele deve ser educado mesmo sem ter essa intenção. No presente estado de coisas são os disparadores, ou seja, indivíduos privados audaciosos, que devem educá-los. Sendo assim, seu papel está bem definido.”

A6) arbitrários baderneiros
Em nossos Episódios contrapúblicos (2014-) consta uma passagem alusiva à exposição "Por aqui, formas tornaram-se atitudes", realizada no Sesc Vila Mariana, em 2010, com curadoria de Josué Mattos. De início, o curador declarou-se entusiasmado com a diversidade do público que desfrutaria da exposição, haja vista o caráter plural das atividades, dos espaços e dos frequentadores desse centro de lazer, cultura e esporte. Para ele, era incrível poder apresentar o melhor da produção artística contemporânea brasileira a pessoas que, em sua maioria, não estavam familiarizadas com tal universo simbólico, contribuindo assim para a ampliação e formação de público. Passadas algumas semanas da inauguração da mostra – que fora montada numa área de grande circulação –, o mesmo profissional acorria indignado aos responsáveis da instituição, exigindo explicações e providências para a avaria dos adesivos de zíperes da obra (em homenagem a Lucio Fontana) de Nelson Leirner, para o uso violento que adolescentes vinham fazendo das bolas de bilhar da instalação (d’après Café Noturno, de Van Gogh) de Hélio Oiticica e para o sumiço de peças do jogo da memória (com imagens de corpos nus femininos da história da arte) de Felipe Cama.

A7) arbitrários contaminadores
Em nosso artigo “Passagens para o rumor do mundo, entre a marquise e o museu”, tratamos das estratégias curatoriais da exposição "A marquise, o MAM e nós no meio", realizada de maio a agosto de 2018, no museu paulistano. Formado por Ana Maria Maia, Educativo MAM e O grupo inteiro, seu time curatorial foi por nós entrevistado para a realização do referido texto. Na ocasião, seus membros puderam detalhar o projeto expográfico da mostra, que procurava criar situações de passagem entre o museu e a cobertura de concreto do parque Ibirapuera. Reunindo dispositivos pensados com esse fim, o mobiliário da exposição incluía barras de ferro, bancos, rampas, obstáculos, cortinas e biombos, que se distinguiam por combinar sugestões de obstrução, permanência e (ultra)passagem, evocando com isso dinâmicas e ritmos característicos da marquise. Após os períodos de permanência de alguns desses módulos na marquise – geralmente às segundas-feiras, quando o museu está fechado para o público –, os mesmos eram novamente levados para a exposição, reintegrando-se à sua expografia, mas com uma importante diferença: utilizados por patinadores, skatistas, ciclistas, dançarinos etc., as peças traziam consigo, para o espaço expositivo, marcas de uso e resíduos materiais. Estes acabaram figurando como fator de divergência entre a curadoria e a museologia, uma vez que, de acordo com parecer da segunda, as substâncias residuais arrastavam bactérias para o interior do museu, representando risco para a conservação das obras.

A8) arbitrários ignaros
No artigo “O populismo como uma forma de mediação", o pesquisador Niels Werber comenta uma iniciativa de Max Imdahl, então professor catedrático de história da arte na Universidade Ruhr de Bochum, na Alemanha, no final dos anos 1970. À época, o docente se animou com a possibilidade de ministrar seminários sobre arte moderna voltados a trabalhadores da fábrica da Bayer, em Leverkusen. Seu programa se baseava no princípio de que a arte moderna toca não apenas os peritos, mas também aqueles que não dispõem de formação estética. Estes poderiam dizer, durante os encontros, tudo aquilo que percebiam e pensavam sobre as obras de artistas como Josef Albers, Barnett Newman, Max Bill, Victor Vasarely, Piet Mondrian e Pablo Picasso – selecionadas e reproduzidas pelo professor para uma plateia formada por funcionários de colarinho azul e colarinho branco. Como forma de estimular que os trabalhadores protagonizassem as discussões sobre arte, Max conclamava-os: “Meu desejo é que vocês deixem suas mentes falar [uma vez que] bom é aquilo que é dito honestamente, e isso é o principal.” Herdeiro do Romantismo, o professor repetia a cada um de seus interlocutores: “Tudo o que posso lhe dizer é que eu não sei mais do que você.” Esse defensor da “igualdade das inteligências e das burrices” operava, contudo, com uma lógica previsível, sempre propondo as questões e selecionando as respostas que daí surgiam. Ao fazê-lo, reformulava os comentários dos trabalhadores em função dos resultados por ele almejados. Foi o que se deu com a discussão em torno do quadro O sonho (1932), de Picasso. Retendo a afirmação de um participante, de que a figura retratada “sonha e, por tudo que sei, pensa em sua irmã ou mãe”, o professor o congratula: “Eu gosto do que você diz”, para na sequência reorientar o enunciado, recapitulando a ideia nestes termos: “Agora, se eu puder simplesmente repetir o que foi dito aqui, por que isso é muito importante, a pessoa representada sonha com o seu próprio outro eu, o qual ela deseja ser. Agora sigamos em frente!” Embora seu interlocutor tenha consentido que “sim, foi o que eu disse”, alguém do fundo pediu a palavra, dirigindo-se ao professor: “Você está tentando nos convencer de algo aqui”, acrescentando: “Você está continuamente transformando nossas opiniões e, dessa forma, modificando-as.”

A9) arbitrários declinadores
Os Episódios contrapúblicos (2014-) trazem uma passagem relativa aos primórdios da Bienal de São Paulo e aos seus (não) públicos. Era dezembro de 1953, mês de inauguração da segunda edição da mostra. Parecia um sujeito matuto. Além da fisionomia, seus modos e trajes denunciavam sua condição de recém-egresso do Interior. "Um caipira", cochichavam alguns. Caiu de paraquedas naquele que seria um marco das comemorações do IV Centenário de São Paulo: a cerimônia de inauguração da 2° Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Tinha ido ao parque Ibirapuera sozinho, sem qualquer objetivo explícito. Ao notar a multidão aglomerada diante de um dos pavilhões – o das Nações – resolveu se aproximar. Supôs que o portão de acesso estivesse prestes a ser aberto, dada a grande quantidade de gente e a inquietação daquele enxame. Sentou-se numa mureta próxima e, pitando seu cigarro, ficou observando e achando graça naquele espetáculo que, sem o saber, o público protagonizava. Dali quinze minutos o portão foi aberto. As pessoas entravam afoitas, aos montes, sequiosas pelo que havia de mais avançado no terreno das artes plásticas. O rapaz permaneceu ali por mais de uma hora, sem esboçar qualquer movimento ou intenção de entrar no pavilhão. Foi quando o motorista do patrono Ciccillo Matarazzo se dirigiu ao anônimo com a generosa oferta: “Se quiser entrar eu posso lhe arrumar um convite e um paletó...” Ao que o rapaz respondeu: “Acho melhor não.”

A10) arbitrários improvisadores
Em O imitador de vozes (1978), livro de contos de Thomas Bernhard, um deles intitula-se “Legado” e trata dos descaminhos de um pintor do início do século XX, cujo nome não é revelado. Tendo sido casado com a tia-avó do escritor, tal pintor é apresentado como alguém que se beneficiara da fortuna do pai da esposa, o qual mandara construir, na área rural onde viviam, um grande ateliê bem aparelhado para o marido da filha, em local escolhido pelo próprio pintor em função das boas condições de iluminação. Pouco tempo depois de pronto, o ateliê e a esposa foram abandonados pelo pintor, que resolveu partir para a América do Sul, de onde nunca mais voltou. Restaram, contudo, seus quadros armazenados no ateliê: telas de grandes dimensões em que ele pintava variações da imagem de Jesus Cristo. Abandonadas, essas telas e seus bem-estruturados chassis logo “encontraram uso entre os camponeses da região [...] como cobertura para as carroças”, finalidade à qual se adequavam perfeitamente. Um detalhe encerra o conto: “Essas telas empregadas como cobertura pelos camponeses eram afixadas às carroças sempre com a imagem de Cristo voltada para dentro.”

A11) arbitrários tocadores
Andreas Huyssen abre seu ensaio Mapeando o pós-moderno (1984) com a seção introdutória “Uma história”. Nela, o autor narra uma visita em companhia de seu filho Daniel, então com cinco anos de idade, à Documenta 7, ocasião em que, sob a influência direta da cria, o crítico literário teria tornado a arte pós-moderna e suas nostalgias “realmente palpáveis” para si. A saga da dupla teve início na entrada do Fridericianum, onde o artista Joseph Beuys havia empilhado milhares de grandes blocos de basalto, na ação intitulada Sete mil carvalhos (1982) – que apelava aos cidadãos de Kassel, cidade reconstruída em concreto em função dos arrasos da Segunda Guerra, que plantassem uma árvore para cada pedra a ser retirada do pátio do museu. Daniel, logo de cara, adorou as pedras e a possibilidade de escalá-las, pondo-se a subir e descer aquele monte irregular, não sem deixar de perguntar ao pai: “Isso é arte?” Já dentro do museu, depois dos comentários paternos sobre “escultura social”, recebidos por um ouvinte distraído, os dois passaram por uma coluna e depois por uma parede, ambas eloquentemente douradas, de James Lee Byars e Kounellis, respectivamente. Algumas salas adiante, depararam-se com uma “mesa espiral” de Mario Merz, que combinava vidro, aço, madeira e placas de arenito, além de galhos que se projetavam para fora do construto espiralado. Enquanto Andreas, ensaiando associações mentais, tentava encontrar o fio de Ariadne desse labiríntico exemplar pós-moderno, Daniel passava os dedos da mão nas superfícies e fissuras do trabalho de Merz. De repente, um guarda surgiu gritando: “Nicht berühren! Das ist Kunst!” [Não toque! Isso é arte!]. Passado o susto da bronca, mas já “cansado de tanta arte”, Daniel finalmente encontrara a oportunidade de descansar, sentando-se num dos blocos de cedro da instalação de Carl Andre, para prontamente ser advertido “de que arte não servia para sentar”. Foi quando o pai crítico pôde compreender, a despeito da heterodoxia daqueles trabalhos todos: “Ali estava ela, de novo, a velha noção de arte: não toque, não ultrapasse. O museu como templo, o artista como profeta, a obra como relíquia e objeto de culto, a aura restaurada.”

A12) arbitrários solitários
Durante a fase da pandemia de Covid-19 em que os cinemas puderam retomar parcialmente o funcionamento – com significativa redução da lotação e adoção de protocolos de segurança sanitária –, o CineSesc realizou uma exibição de meio de semana em que só dois ingressos foram vendidos. No horário da sessão, apenas uma pessoa compareceu à sala, sem que se saiba o motivo da ausência da que adquiriu a outra entrada. O filme teve início com somente uma das 297 poltronas ocupada. Antes da metade da película, entretanto, o solitário espectador decidiu abandonar a sala, deixando o filme às moscas. Perguntado por uma funcionária do local sobre o motivo de sua saída repentina da sessão, ele respondeu que não aguentou permanecer ali, inclusive porque havia recorrido ao cinema justamente para não ficar sozinho em casa, detalhando que, quando se viu isolado naquela enorme sala, o sentimento de solidão se fez insuportável.

A13) arbitrários esteticamente decaídos
Disponibilizado no YouTube, o vídeo do evento de lançamento de Convite à atenção (2018), material educativo da 33ª Bienal de São Paulo, registra a explanação de seu curador geral, Gabriel Pérez-Barreiro, que se vale de trecho do crítico Mário Pedrosa para tratar do que seriam as carências dos públicos da arte no quesito da experiência estética. É nessa chave que o curador espanhol lê o fragmento no microfone, em português trôpego: “A atitude com que o nosso público se submete a uma experiência estética é, em geral, a mais contrária possível à verdadeira resposta que seria de esperar. É idêntica à do sujeito que espera subir uma escada e vê-se, ao contrário, ao erguer o pé, diante do vácuo. É fatal que degrinogle [sic] escada abaixo. A culpa, porém, não é nem da escada e nem da arte moderna: é da sua distração e de seus maus hábitos mentais.” De posse de hipotéticos antídotos à indesejada distração e aos reprováveis costumes da mente – os “protocolos de atenção” trazidos pelo material educativo deveriam barrar esses males –, Gabriel reitera o excerto de Pedrosa, afirmando que, passado meio século, a sentença “continua muito atual”, apesar de ele não fazer qualquer menção às mudanças processadas na arte e na percepção. O curador limita-se a relatar, em lugar disso, o que constata em sua vivência profissional: “A gente que observa, em qualquer exposição de arte, em qualquer instituição cultural, o desinteresse das pessoas, a velocidade com que a arte é consumida, ou não consumida... e a diferença entre a ambição das propostas intelectuais e muitas vezes a pobreza da experiência.”

A14) arbitrários tumultuadores
Em seu artigo “Bárbaros, escravos e civilizados: O público dos museus no Brasil” (2005), a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz Luciana Sepúlveda Koptcke desenterra uma portaria de 24 de outubro de 1821, na qual o então príncipe regente Dom Pedro I prescreve ao Museu Real medidas para extirpar possíveis tumultos gerados pelo público, a quem a realeza passou a facultar acesso a certas salas do museu, apenas às quintas-feiras e no período da manhã. Diz a portaria que as visitas seriam autorizadas somente às pessoas “que se fizerem Dignas disso pelos seus conhecimentos e qualidades”. Essa delimitação deveria vigorar “para conservar-se nessas ocasiões a boa ordem e evitar-se qualquer tumulto”. Daí que, por via das dúvidas, o príncipe destacasse “a Repartição da Guerra [para] que no referido Dia se mandem alguns soldados da Guarda Real da Polícia para fazer manter ali o sossego que seja conveniente”.

A15) arbitrários cismados
A socióloga Nathalie Heinich, em seu artigo “Da rejeição à arte contemporânea para a guerra cultural", registra e processa uma vasta série de depoimentos sobre diferentes aspectos das artes visuais e de sua institucionalidade, quase todos advindos de públicos não especializados da França e dos Estados Unidos. Referindo-se ao programa federal de subsídio às artes deste último, mais precisamente, ao National Endowment for the Arts – NEA, um cidadão “classe média” expressa sua contrariedade face ao financiamento público das artes com o seguinte raciocínio: “Muitos artistas sentem a necessidade criativa de ridicularizar os sentimentos da classe média, e esperam que os contribuintes financiem tal façanha.” A despeito da tendenciosa simplificação do problema por parte do contrariado contribuinte, leitores de sua queixa, mesmo entre aqueles que defendem o NEA, não puderam deixar de reconhecer alguma lógica em sua equação.

A16) arbitrários confidentes
Em Arca Russa (2002), filme de Alexander Sokurov rodado nas galerias do Museu Hermitage, em São Petersburgo, o personagem vivido por Sergei Dreiden – apresentado como “Marquês” – flana pelos ambientes de exibição da rica coleção de obras, abordando outros visitantes com frequência. Uma dessas aproximações se dá de surpresa, com o Marquês inicialmente oculto no canto da sala expositiva, afundado na penumbra. Dali, ele flagra uma visitante que, de braços abertos, esboça inesperada coreografia diante de um quadro que traz a imagem de uma mulher nua sobre a cama, no centro da composição. Surpreendendo-a com uma interjeição em tom de voz alto, ele faz com que a dançarina interrompa seus movimentos diante da pintura, voltando a atenção para o intruso. O Marquês sente que atrapalhou algo e se desculpa, mas não se furta de fazer a pergunta: “A quem tudo isso se destina?”, referindo-se ao ritual performado pela mulher diante da pintura, ou melhor, com a pintura. Sua resposta é franca: “Eu falo com este quadro, tenho necessidade de me exprimir.” O Marquês sugere então que ela prossiga, reconhecendo que essa é “a sua forma de se comunicar com a pintura”. Ela então procura envolvê-lo no colóquio, estendendo-lhe a mão para trazê-lo a uma zona de cumplicidade da qual ele, até então, não participava. Após girar conjuntamente diante do quadro, numa espécie de valsa, o Marquês escuta de sua interlocutora: “Eu e este quadro temos um segredo.” Ao confiar isso ao seu par, a mulher prontamente se constrange, desvencilhando-se do abraço e partindo ligeira, envergonhada.

A17) arbitrários que querem encontrar dinossauros
No Diário do busão: visitas escolares a instituições artísticas (2017), registramos passagens de uma visita mediada com grupo de estudantes do 5º ano da Escola Estadual Almiro Pereira Dantas ao MIS – Museu da Imagem e do Som, que naquele semestre sediava a mostra "O mundo de Tim Burton" (2016), exposição de grande porte dedicada ao processo criativo do diretor norte-americano, com cerca de quinhentos itens, incluindo desenhos, protótipos, adereços, maquetes e cenários alusivos à sua filmografia. O universo onírico do autor capturou pronta e assombrosamente os estudantes, que logo na chegada acharam que a mediadora que os conduziria, na verdade, era uma personagem fantástica. Involuntariamente, a roupa, os óculos, a postura e o seu jeito de falar de fato sugeriam algo nessa direção. A atmosfera surreal era reforçada pelo constante zunido de um enxame de abelhas que acompanhava ininterruptamente o grupo, que ao final do percurso notou que ele mesmo o produzia. Ao longo do trajeto pelas salas expositivas, alguns estudantes entabulavam conversas, por exemplo, com bonecos hiper-realistas em miniatura de Umpa Lumpa, além de explicarem ideias absurdas gesticulando com luvas de lã fosforescente. Enquanto um menino, mimetizando o robozinho disfuncional de Burton, abria a tampa de sua cabeça e revelava inusitados constructos mentais de arame, uma garota foi flagrada girando sua cabeça em 360º sobre o pescoço, captando visualmente tudo o que estava à sua volta. Três salas à frente, onde se encontrava a maquete do cenário suburbano do filme Edward Mãos de Tesoura (1990), o grupinho de meninas ensaiava uma manobra de teletransporte para o local. Mas a insensatez maior ficaria para o final da visita, no momento em que a mediadora-personagem perguntou ao grupo o que este tinha achado da exposição. A resposta do aluno que não havia aberto a boca até então deixou todo mundo boquiaberto: "Não achei nada do que eu estava procurando no museu..." Ao que a personagem-mediadora suplicou: “Mas que coisa é essa?" A resposta foi lacônica: “Ossos de dinossauro.”

A18) arbitrários admoestadores
No filme Arca Russa (2002), um jovem contempla, sozinho, com as mãos no bolso e apoiado numa das pernas, o quadro São Pedro e São Paulo (1587-1592), de El Greco, situado no canto de uma das galerias expositivas do Museu Hermitage. Com as mãos para trás, o personagem do Marquês se aproxima do rapaz e do quadro do pintor espanhol de origem grega, diante do qual faz o sinal da cruz, se ajoelha e abaixa a cabeça, concluindo seus gestos com a expressão “amém, amém”. Voltando-se para o reverente Marquês, o jovem comenta: “É lindo, não é?” A resposta “absolutamente”, verbalizada de pronto pelo primeiro, é complementada com uma interpelação dirigida ao deslumbrado observador: “Você é católico?” Ao redarguir que “não”, que não era católico e perguntar o por quê da indagação, o jovem é situado pelo Marquês: “Porque você estava, pareceu-me, mergulhado nos seus pensamentos, em frente às imagens dos fundadores da nossa Igreja.” Mas quando devolve ao seu interlocutor que não estava pensando em nada daquilo, o jovem é advertido de que aqueles eram os apóstolos Pedro e Paulo. O rapaz explica que olhava para os homens representados sobre a tela simplesmente “porque eles me agradam”, acrescentando, diante do aborrecido devoto, que “um dia, todos os homens se tornarão como eles”. Isso funciona como a gota d’água para o Marquês, que censura o visionário herege, encaminhando-se na direção dele e encurralando-o no canto da sala: “E como é que você pode saber no que se tornarão os homens se não conhece a história dos santos?!” Pressionado na aresta da galeria, o intimidado rapaz tenta se desvencilhar do pregador, chamando atenção, com a voz confrangida, para as belas mãos dos apóstolos, em suas singelas posições. O Marquês responde que de fato “são belas”, mas quer saber o que há para além da beleza, tornando a repreender o jovem por sua insolência em achar que sabe do destino dos homens, sendo que nem a história dos santos ele conhece. O jovem ainda tenta se safar, dizendo que os homens da pintura “são bons e sábios”, afirmação invalidada pela exigência: “Como você pode saber como eles são se não leu o Evangelho?” Após liberar o rapaz de suas admoestações, deixando-o respirar longe do canto, o Marquês volta a se aproximar do quadro, agora para cheirar a sua moldura dourada, sorvendo um odor que lhe desperta grande prazer.

A19) arbitrários explicadores
Em dado trecho do artigo “A fruição nos novos museus” (2008), o professor Ricardo Nascimento Fabbrini tenta esclarecer os motivos das intermináveis fileiras de visitantes que esperavam na avenida Tiradentes, em pé, para ver a exposição de Auguste Rodin, em 1995, na Pinacoteca do Estado de São Paulo – para a qual havia sido montada ampla campanha de marketing visando atrair o grande público. O autor do texto recorda, possivelmente na condição de testemunha ocular, dos “paulistanos que aguardaram, sob sol tórrido, em filas quilométricas nos quarteirões suspeitos da Luz, para ver esculturas em bronze de Ugolino e Mercúrio, do século XIX”. Buscando explicar o fenômeno, ele recorre a seus pares críticos para dizer, primeiro, que “São Paulo já entrava numa nova fase de consumo cultural”, caracterizada por um tipo de manobra em que “a cultura de elite se transforma em atração de massas”, conforme as aspas de Marcelo Coelho. Nessa mesma direção, é citada passagem de Paulo Arantes, para quem “megaexposições como essa de Rodin oferecem ao mundo de gente que se acotovela nas bilheterias algo que a cultura de massa manufaturada não poderia mais proporcionar”. Complementando essas observações, Fabbrini diz que “é possível supor, por exemplo, que os visitantes enfileirados na Tiradentes associavam, imaginariamente, a visita a essa exposição de Rodin à experiência de inclusão social”. Não ocorreu ao professor-pesquisador, contudo, fazer uma sondagem com as pessoas que se encontravam na fila do museu paulistano, a fim de que elas próprias pudessem expor suas motivações para estar ali.

A20) arbitrários que correm pelas galerias
Postais mediativos (2017) é uma série de cartões postais que produzimos a convite do MALBA – Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires, em 2017, a partir da jornada de mediação “Hábitos de aprendizaje: desafíos en común”, ocorrida nos dias 03 e 04 de março daquele ano. Durante o evento, foram imaginadas e testadas diferentes formas de uso dos espaços do museu, incluindo suas galerias expositivas. Nas discussões a esse respeito, uma mediadora que tinha viajado de Rosário para participar da jornada em Buenos Aires lembrou-se de Bande à part (1964), filme dirigido por Jean-Luc Godard, no qual o trio de protagonistas corre em alta velocidade pelas galerias do Museu do Louvre. Registramos graficamente, em um dos postais, o momento em que o trio passa “rasgando” pelo quadro de uma figura feminina reclinada sobre um canapé, intitulado Madame Récamier (primeiro quarto do século XIX), de Jacques-Louis David. A cena da corrida ressurge, aliás, no filme Os Sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci, no qual os personagens Isabelle, Theo e Matthew também correm pelo Louvre, inclusive buscando quebrar o recorde de 9 minutos e 43 segundos, tempo que Odile, Franz e Arthur, personagens do filme de Godard, levaram para atravessar o museu em Bande à part.

A21) arbitrários sonegadores
Em Artoons (2008-), série de cartuns que cruza mais de uma década e segue circulando em diferentes veículos de comunicação, Pablo Helguera revira o universo da arte contemporânea naquilo que este demonstra de mais mundano e promíscuo, zombando da pretensa gratuidade, desinteresse e excepcionalidade difundidas pela vulgata estética. Num desses cartuns – que apresenta um casal de meia-idade bem vestido e bebendo champanhe, em uma galeria de arte provavelmente localizada em Nova York, diante de uma obra bidimensional, cujo conteúdo não é especificado pelo sintético desenho – pode-se ler no rodapé a fala da personagem feminina: “Esta peça ficaria ótima em nossa unidade de armazenamento de arte isenta de impostos na Suíça.”

A22) arbitrários manuseadores
O catálogo da exposição “A marquise, o MAM e nós no meio” (2018) justapõe fotografias das obras exibidas na ocasião e registros textuais de situações fruitivas levadas a efeito pelos públicos. No cabeçalho da página dupla que reproduz Seu nome como título (2010), trabalho da artista Laura Lima composto por duas folhas de papel semidobradas e vazadas com aberturas para os olhos, acondicionadas em placas transparentes de acrílico, um mal-entendido é reportado por Fernanda Zardo, educadora do MAM-SP – Museu de Arte Moderna de São Paulo. Ao se deparar com aquelas “máscaras”, e após ler o nome da obra na legenda, a visitante da exposição sacou uma das peças da parede e a colocou sobre o seu rosto. O gesto, pensou ela, concretizava a proposta da artista: vestindo a “máscara” a participante automaticamente incorporava a sua identidade (ou, ao menos, o seu olhar) à obra e, assim, o seu nome ao título da mesma. Só que não: ela foi prontamente advertida de que não podia manusear a peça, que deveria ser mantida e contemplada na parede. Constrangida, ela buscou se retratar: “Não era de pôr no rosto? Não podia colocar a mão? Desculpa. É a minha primeira vez num museu.”

A23) arbitrários canônicos
O documentário Mixtape 2: Videobrasil (2014), comissionado pelo 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (2014-2015) aos irmãos Paulo e Ricardo Miyada, traz o menino Nicolas Pereira de Mori, frequentador do Sesc São Carlos, como interlocutor das mediadoras da exposição em cartaz, composta majoritariamente por vídeos e performances. No diálogo de abertura do filme documentário, que se propõe conferir protagonismo aos públicos do Festival, uma das mediadoras lança mão da conhecida tautologia de matriz duchampiana: “Os artistas são os que fazem arte. Mas aí vem um problema: o que seria arte?... Então, dá para chamar várias pessoas de artista.” O introito serve de deixa para ela indagar o garoto: “Consegue pensar em alguém que você ache que é um artista?” Nicolas hesita: “Hum... num sei... acho que... o Monet?” Sua afirmação em forma de pergunta é quase repreendida pela mediadora-de-exposição-de-arte-contemporânea: “Monet?!” O menino toma coragem e replica: “É, ele é um artista.” Contrariada com um nome tão óbvio, consagrado e canônico, a mediadora dá novas voltas: “Mas... ser um artista... bom, eu acho pelo menos... que um artista é alguém que faz arte, e o que ele faz define ele como artista. Não?” Nicolas consente: “Então tá.” Insatisfeita com sua aparente submissão, ela provoca: “Então tá?! Mas o que você acha?” O moleque teimoso retoma o seu raciocínio, para desespero da mediadora: “Eu acho que ser artista é legal... porque você pode pintar quadros e fazer desenhos.”

A24) arbitrários domingueiros
A pesquisadora Luciana Sepúlveda Koptcke (2005), em “Bárbaros, escravos e civilizados: O público dos museus no Brasil”, lembra que nos últimos anos da Revolução Francesa o público do Museu do Louvre se avolumou a ponto de beirar a multidão, “considerada perigosa”. Acessando um relatório do museu, Koptcke apresenta excertos em que sua administração manifesta preocupação com a “afluência estupenda do público constatada de 17 a 23 de setembro de 1799”, detalhando que “a multidão foi tão numerosa nestes 7 dias que todos os recursos da polícia, apesar da atuação e do cuidado que todos os guardas demonstraram em sua função, foram sem efeito”. Afora o ciclo revolucionário, a afluência maciça ao Louvre não era cotidiana, mas dominical. Até 1855, o acesso a esse museu “não era franqueado ao público em geral a não ser aos domingos” – configuração que se altera com a Exposição Universal de Paris, quando novo regulamento institui sua abertura a todos também durante a semana e aos sábados. Apesar disso, o grosso do público comparecia aos domingos mesmo, com seus “visitantes dominicais” personificados por aqueles que faziam “uso operário da instituição”, a ela acorrendo no dia do ócio, onde “buscavam um momento de diversão e celebravam, de preferência nos dias de chuva, a possibilidade de compartilhar com o cidadão republicano um espaço simbólico”. Ao deslocar para os dias correntes a questão da presença dos públicos não especializados nos museus, Koptcke relativiza o “lugar-comum” afeito a criticar as exposições blockbusters promovidas pela indústria cultural, nele identificando a nostalgia de um ambiente civilizado, discreto, contemplativo e ideal à apreciação estética. Estariam os críticos advogando em causa própria, ao reclamar das “salas lotadas [e das] crianças e adultos em procissão ruidosa a invadir cada canto”? Daí a pesquisadora recorrer com ironia ao termo “bárbaros” para figurar os domingueiros, hoje engrossados pelos turistas, concebendo-os como “estrangeiros”, “não possuidores dos códigos de acesso a determinado universo simbólico” e “cujas práticas de contato e apropriação são julgadas inadequadas, violentas ou desprezíveis por um grupo de referência” representado por aqueles que se autodesignam “civilizados”.

A25) arbitrários trepados
A série O Louvre e seus visitantes (1964-2003), desenvolvida ao longo de quase quarenta anos por Alécio de Andrade, reúne algo em torno de doze mil registros fotográficos de frequentadores do museu circulando por suas galerias, relacionando-se com as obras e os espaços onde estas são exibidas. Em meio a essa monumental profusão de flagrantes das condutas dos públicos, encontramos uma imagem particularmente curiosa, enigmática até, produzida em 1993. A fotografia em preto e branco mostra o canto de uma sala expositiva, dividido simetricamente pelo enquadramento da câmera de Alécio. Em cada banda se vê o fragmento de um quadro figurativo de grandes dimensões e com grossas molduras, ambos do gênero religioso. No da esquerda, é possível distinguir dois homens com poucas vestes carregando um animal, enquanto no da direita divisa-se um homem de turbante segurando um bebê, circundados por figuras reverentes. No centro da composição fotográfica está a linha vertical que demarca a aresta resultante do encontro das paredes perpendiculares, as quais chamam atenção não somente por servirem de suporte às obras, mas também pelos lambris inferiores de madeira que as revestem. Encorpada e nobremente trabalhada, essa “almofada de madeira” gera uma estreita superfície onde, à primeira vista, alguém parece ter deixado um boneco sentado de pernas abertas, posicionado exatamente no ângulo reto das paredes, com um pé para cada lado. A distância com que o confuso ser foi fotografado ajuda a criar essa impressão errônea, que se desfaz quando observamos a imagem mais de perto e com mais vagar. Na verdade, trata-se de uma criança vestida com macacão e boné, trepada naquele canto como quem brinca de descansar da peregrinação no Louvre.

*Eis os públicos dos públicos: Pablo Helguera, Nathalie Heinich, Cayo Honorato, Alécio de Andrade, Thomas Bernhard, Michel Laub, Alexander Sokurov e Tilman Büttner, Paulo e Ricardo Miyada, Andréa França e Ana Tereza Jardim Reynaud, Roberto T. Oliveira e João Wainer, Renata Bittencourt e Jorge Coli, Suely Rolnik, Diogo de Moraes Silva, Eliana Baroni e Lucas Oliveira, Ana Maria Maia, Educativo MAM e O grupo inteiro, Don DeLillo, Theodor Adorno, Ana Beatriz Barbosa Silva, Gaudêncio Fidelis, Claire Bishop, Luisa Duarte, Sergio Bruno Martins, Daniela Labra, Douglas Crimp, Pedro Andrada e Luiza B. do Nascimento, Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, Juan Gonçalves, Fernanda Antônia e Rosiane Silva, Andreas Huyssen, Jean Baudrillard, David Freedberg, Otilia Arantes, Ricardo Fabbrini, André Breton, Gabriela Fonseca, Roberto Schwarz, Élida Salazar, Luciana Sepúlveda Koptcke, Niels Werber, Marcelo Coelho, Bruno Moreschi e Charles M. Schulz.